É costume lamentar a inexistência da filosofia portuguesa. Quem assim pensa parte do pressuposto de que existe um modelo bem definido da filosofia. Esta presunção é, no entanto, incerta. Como é discutível que a filosofia seja indispensável a uma cultura: grandes culturas não tiveram filosofia. E, no caso do português é inegável que temos uma cultura com traços bem definidos.
Nada garante que a filosofia seja o fim último do conhecimento humano. Na Grécia, os filósofos apontaram para a necessária transformação da filosofia em sabedoria. A metamorfose do inquérito teórico pela verdade em práctica efectiva de vida orientada para um fim é evidência na Edade Média. Só a partir da modernidade é que a filosofia tendeu para o lado daquilo a que hoje chamamos ciência.
Os pensadores portugueses analisados neste livro consideram a modernidade como uma decadência filosófica. Para eles, a filosofia é parte da viagem do conhecimento humano e deve dar lugar à sabedoria. Isto não significa que a filosofia não seja um bem inestimável. A filosofia é demasiado importante para que fique nas mãos dos filósofos profissionais, que tendem a transformá-la num tenicismo especializado que é oposto da cultura.
Com esta obra pretende-se tornar acessível o discurso filosófico enquanto acto da cultura: descodificar a linguagem que lhe é própria tornando-a acessível abrir novas abordagens na apreciação de um domínio caracterizado muitas vezes pelo hermetismo, onde, ao contrário, se justifica uma ampla abertura. Ou não fosse o acto cultural, que é a filosofia, a raíz da cidadania: o espaço em que o Homem afirma a sua condição humana e se projecta dentro da Comunidade, incluindo a do Saber, como a Razão do seu futuro.
EXCERTO DA CONCLUSÃO: «A Utilidade da Filosofia», pp.519/520
«A vida não pode ser apenas isto – isto de factum, isto de fatum, tragédia que a razão enlouquecida para nós próprios inventa, à guisa de pesadelo incontornável, castigo sem culpa, pese embora no profundo do nosso ser permaneça a esperança doutro mundo, que sentimos merecido. «Eu vinha para a vida, e deram-me dias», proclama Ruy Belo em verso inolvidável.
Pensar não é apenas raciocinar e viver é muito mais do que pensar e não podemos definhar, escravos de nós próprios, sem fazermos nada contra um cancro evidente. Não somos pedras, por mais respeitáveis que as pedras sejam. Não resistimos sem olhar para o céu estrelado acima de nós. Mesmo que não houvesse mais do que factum e fatum, a vontade livre deveria insurgir-se contra tal “realidade”, desajustada ao impulso mais radical do humano, que se lança do futuro aberto que concretiza a memória recôndita de pertença ao sentido absoluto.
A filosofia deve ajudar o espírito a reinventar a alegria e a esperança, sol aberto duma tarde estival que já conhecemos quando infantes. A filosofia é um instrumento transitório e não um estado de espírito permanente […] Ao contrário do que pode parecer, este livro ainda se encontra no domínio filosófico, sendo a transitoriedade do seu subtítulo para levar a sério. No fundo, trata-se nestas páginas do maior elogio possível à filosofia, salvando-a da manipulação tecnicista à qual tem sido votada desde que vive encarcerada nas universidades, para benefício dos poderes instituídos deste mundo. Ela nasceu com ambições maiores […]
Mário T Cabral é natural da ilha Terceira, Açores (1963), onde mora. Franciscano da Ordem Terceira, Doutor em Filosofia, poeta, romancista e pintor. O seu último livro – O Acidente – acaba de ser distinguido com o Prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2005/2006 (Porto: Campo das Letras). O seu primeiro livro publicado foi de crónicas – Histórias duma Terra Cristã (1996) – seguido de O Meu Livro de Receitas (Guimarães: Pedra Formosa, Poesia, 2000) e de O Livro das Configurações (Porto: Campo das Letras, Romance, 2001); o último é de filosofia e tem por título: Via Sapientiæ: da Filosofia à Santidade (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009). Voltará à poesia em 2010, com Tratados (Guimarães: Opera Omnia). Está traduzido em espanhol, inglês e letão. Os desenhos inclusos em Tratados pertencem a Eudemim: O Regresso ao Belo (Sinestesias) – exposição de 53 desenhos na Carmina Galeria, Terceira, em 2005. A sua última exposição foi de arte sacra e teve como título Gratia Plena (Convento de São Francisco, Lajes do Pico, 2008).