Um livro
dolorosamente português
Desenganem-se os adeptos da crítica
de pendor biografista relativamente ao Livro de Vozes e Sombras (Dom
Quixote, 2020), o mais recente romance de João de Melo e seu 30º título entre
ficção, poesia, ensaios, crónicas e relatos de viagem.
histórico, e sim uma ficção narrativa e literária (…)". E isto porque,
dando conta de alguns acontecimentos relacionados com o nosso passado recente,
não há nesta obra uma perspectiva histórica desses acontecimentos, mas a visão
de uma realidade ficcionada. Estamos, por conseguinte, perante uma recriação
literária.
do Estado Novo e o derrube da Ditadura, as mudanças ocorridas em Portugal com o
25 de Abril, a exaltação revolucionária e os conturbados tempos de uma deriva ultra-esquerdista,
a inquietação populista do Verão Quente de 75, os entusiásticos anseios dos
movimentos do MFA e do PREC, o fim da Guerra Colonial, a instauração da Democracia,
o fim de um ciclo colonial, as independências africanas, a Descolonização e o
retorno dos portugueses de África, a ação terrorista dos movimentos independentistas
da FLA (Frente de Libertação dos Açores) e da FLAMA (Frente de Libertação do
Arquipélago da Madeira), a Guerra Civil em Angola, as novas mitologias
históricas, entre outros.
plurissignificativo, Livro de Vozes e Sombras, cuja ação
se desenrola nos anos 90 do século XX, é um romance de grande desenvoltura e fôlego
narrativo, marcado pela polifonia e constituído por seis narrativas que
paralelamente se articulam, e um final intitulado "Finisterra". Há, neste livro,
um "espírito de lugar", uma atmosfera, um tempo histórico e uma época
extraordinariamente bem caracterizados.
exterioridade, do real, do vivido, do conhecido, do documental e do documentado
não são possíveis à luz de nenhuma cartografia.
É dessa impossibilidade de aferição pelo saber comum que nasce a obra literária.
Dito de outra maneira: é desse cruzamento, desse entrelaçamento entre
experiências do real e a reelaboração desse mesmo real, entre o histórico e o
ficcionado, entre memória e invenção, entre guerras e sonhos, medos e perigos, conquistas
e ilusões que João de Melo extrai os seus núcleos míticos.
deste Livro de Vozes e Sombras, uma sucessão linear que deixará com
certeza escapar uma das facetas mais aliciantes da arte verbal de João de Melo:
a vitalidade, a vibratilidade e a densidade da sua linguagem prodigiosa, dono e
senhor que é de notabilíssimos recursos narrativos. E, nesta obra, são diversas
e diversificadas as vozes narrativas que flutuam numa impessoalidade
omnisciente.
estéticos será tão difícil como reduzi-lo a uma cartilha ideológica. E isto
porque, neste autor, a arte supera o testemunho. Nele, todo o acto social é um
acto de consciência, e toda a tomada de consciência é um acto de
responsabilidade social – bem patente, aliás, em toda a sua obra. Cruzando
várias gerações, e dando conta de realidades adversas e vontades opostas, as
personagens do Livro de Vozes e Sombras, insinuadamente dramáticas e
involuntárias, resultam precisamente dessa consciência cívica. Mais importante,
porém, do que uma análise referencial das personagens, eventos e
circunstâncias, será sem dúvida a avaliação do contributo audacioso que João de
Melo presta, com a publicação deste livro, ao romance português.
russo e meu suado pesadelo na Faculdade de Letras de Lisboa) ao referir que
"toda a personagem é um ser de papel". Para mim, a personagem será sempre, e
tão-somente, uma criação do autor para lhes insuflar sentimentos, emoções e
estados de alma. E, neste Livro de Vozes e Sombras, as
personagens criadas por João de Melo dão luzimento à literatura portuguesa,
havendo uma que se destaca pela sua riqueza humana e espessura psicológica:
Ângela Mendes Pinto, cega de nascença (mas que vê com o coração), educada
por freiras, sábia e visionária, mulher de uma extrema sensibilidade. E temos Custódio
Pinto, seu pai, homem violento e esquizofrénico, colonialista assumido
em Angola, senhor de Munakala, proprietário da casa Grande, da roça de café, de
uma extensa fazenda, de manadas e de uma serração, mas que, com a
Descolonização, ficará sem nada e acabará internado num manicómio de Lisboa; ele
tem como mulher Maria dos Anjos Mendes que, submissa, sofre a violência física
e emocional que o marido sobre ela vai exercendo; Mariano Franco,
ex-operacional da FLA, descendente de famílias tradicionais de São Miguel, a
viver nas Capelas, que conta a sua história a Cláudia Lourenço, jovem e
bela jornalista do jornal lisboeta Quotidiano
que àquela ilha é enviada para o entrevistar; Manuel Cristóvão,
sindicalista, democrata e esquerdista, a viver no Rosário, perseguido e expulso
dos Açores pelos capangas de Mariano Franco…
relação à FLA (muito significativa é a "cena" em que, no Café Milhafre, em
Ponta Delgada, um capitão de Abril enfrenta, corajosamente, um grupo de
separatistas, "revoltosos tocados a aguardente e cerveja", (p. 266) que se
acobardam, bem como as resiliências dos retornados (em rigor, refugiados) de Angola, numa inquietante
busca de novas formas de encarar o futuro.
extraordinária pormenorização, a uma linguagem densa de valores poéticos, à
elaboração de uma atmosfera mágica, à utilização de uma imagística sedutora e
de um ritmo original, dá-nos um belíssimo retrato sobre "angústias e incertezas
da alma" (pág. 249), isto é, sobre a condição humana. Leia-se, a propósito, o
capítulo "Uma cortina sobre África" e aprecie-se a sua beleza e riqueza
literária. Admiráveis narrativas: as pilhagens de negros sobre os bens dos
brancos; as vacas de Custódio
barbaramente mortas a golpes de catanas por bandos de negros; e é Custódio que,
expulso do seu lugar e espoliado e despojado das suas riquezas, lança fogo à sua
própria casa (qual outro indignado Manuel de Sousa de Frei luís de Sousa, de Garrett), fugindo para o aeroporto de Nova
Roma; o adeus a África e a debandada trágica dos retornados para o Aeroporto em
busca de lugares nos aviões que faziam a ponte aérea com Lisboa; a estranheza
da sua chegada e a maneira como, entre medos e angústias, esperanças e
desilusões, verdades e mentiras, vão viver uma nova realidade em Portugal,
reinventando-se.
de partidas históricas", assim definiu João de Melo este seu romance em
entrevista ao "JL". Acima de tudo, o autor lança olhares muito atentos sobre os
acontecimentos vividos nos Açores no pós 25 de Abril de 1974 (impressionante a
descrição da grande manifestação de 6 de Junho de 1975 ocorrida em Ponta
Delgada) e, algo sem precedentes na ficção narrativa, dá-nos um notável retrato
dos conluios e sobressaltos do movimento separatista da FLA na ilha de São
Miguel e o modus operandi dos seus
operacionais.
rapto do sindicalista Manuel Cristóvão: espancado em plena rua de Ponta Delgada
por separatistas embuçados, é atado de pés e mãos com uma mordaça na boca e
colocado na bagageira de uma viatura, conduzido para lugar incerto e, no dia
seguinte, deportado, à força, para Lisboa…
cicatrizar e são, simbolicamente, a dor de um tempo português em que o medo, a
crueldade e a intolerância foram postos ao serviço dos mecanismos repressivos
do Estado Novo. A contas com uma estúpida e inútil guerra (1961-1974) que
constituiu uma das mais trágicas encruzilhadas da nossa História, Portugal,
"país uno e indivisível", chegou tarde ao 25 de Abril, pois que durante meio
século de ditadura foi um país analfabeto e subdesenvolvido, vivendo (entre
parêntesis e a preto e branco) o seu ruralismo agrário, o seu conservadorismo
bacoco…
potencialidades cinematográficas deste romance e chamo, a propósito, a atenção
dos realizadores do meu país. Está cá tudo: aventura, ação, personagens
palpitantes, mistério, violência e até uma pitadinha de sexo: a magistral
descrição do acto sexual praticado, num quarto de hotel, pela jornalista Cláudia
Lourenço e por Gil (correspondente do jornal Quotidiano nos Açores) em noite de copos e epifania…
modas e dos grupos literários, João de Melo é, em definitivo, ele e os seus
livros – todos de elevadíssima qualidade. Este Livro de Vozes e Sombras é
mais um que passa a constituir importante marco na literatura de expressão
portuguesa. Por isso mesmo saúdo a grandeza literária, estética e humana desta
obra.