Vidas anoitecidas
Sentados à lareira, alimentam a chama com pequenos lenhos, enquanto ateiam o silêncio. Pelas paredes brancas escorre a humidade e o tempo. Em cima da cómoda as fotografias dos casamentos dos dois filhos iam amarelecendo. Lá fora, o vento poderoso transfigura todos os elementos duma realidade, orquestrada pela espuma furiosa das ondas.
Ela cose uma velha camisola. Ele contempla a chama, alheado e vazio.
Já perto dos oitenta, apanhou-o a doença de Alzheimer. Fez-se anunciar por pequenos esquecimentos que pareciam quase sem importância. No entanto, foram tomados por meras distracções. Afinal, ele lembrava-se tão bem das coisas antigas: cada facto da infância e da juventude parecia ter ficado bordada laboriosamente no tecido da memória.
Há um ano atrás, ainda ele recordava o baile onde a conhecera. Tinha sido amor à primeira vista, embora contrariado pelas duas famílias. Ele era pobre, ela de família abastada e com prestígio. A situação acabou por se resolver através da fuga para uma terra distante e dum casamento em segredo, que cortou o convívio com as famílias durante várias décadas. Foram-se habituando a viver um para o outro.
Os anos foram passando, mais de uma vez as dificuldades lhes bateram à porta: as doenças, os azares… mas de mãos dadas enfrentavam o mundo e a vida, sempre com o sorriso da esperança a pairar-lhes no íntimo. No fundo, parecia haver uma solução para tudo, desde que estivessem juntos.
Contudo, agora ela principiara a sentir-se mais só do que nunca. Começara a temer o dia em que o seu companheiro partiria de corpo e alma e a abandonaria para sempre. Rezava para que tal não sucedesse, para que fosse ela a primeira a desaparecer… Não obstante, depois apercebia-se do egoísmo que a sua prece continha. Que seria dele se fosse ela a primeira a falecer? Ambos os filhos haviam emigrado para a América e seria complicado cuidarem do pai senil e demente. Provavelmente ficaria esquecido num qualquer lar de terceira idade até que o fantasma da morte o resgatasse num golpe de misericórdia.
-Mãe, a que horas jantamos? E o Toino, quando chega do trabalho? – perguntava ele, com frequência. Recuara a um mundo onde a infância, as recordações e os raciocínios sem sentido se mesclavam. Há dois meses que insistia em chamar-lhe “mãe” e em perguntar pelo irmão mais novo, falecido havia mais de cinquenta anos.
Ela respondia-lhe pacientemente. No início, ficou desesperada, queria mostrar-lhe que era a esposa dele, que a mãe dele já morrera havia muitos anos. Depois desistiu. Apercebeu-se que o seu mundo era outro e seria melhor integrar-se nele, visto que ele jamais tocaria a realidade.
Era aquela a sua mais recente prova de amor. Segui-lo pelos meandros da inconsciência turbulenta. Era isso o que restava ainda do homem que sempre amara, que fora o centro da sua existência.
•- Mãe, amanhã vais sair? Vou ficar sozinho? – insistia, amarrotando o cobertor que lhe cobria as pernas.
•- Não, meu filho, meu amor, vou ficar sempre aqui contigo, para te fazer companhia.. – respondia em tom maternal – E se quiseres damos um passeio até à vila.
•- O que é o almoço hoje?
•- Querido, acabaste mesmo agora de jantar…
•- Mãe, achas que o avô vai morrer? Ele parece pior…
•- Não, querido, ela já está quase bom. – e assim lhe ia alimentando as ilusões. Pintando-lhe um mundo agradável, adequado ao seu ser anoitecido. Assim, o sofrimento não o tocaria no seu reino de imagens e vidas perdidas. Afinal ela era tudo: a mãe, a esposa, a razão, a consciência.
Ao anoitecer das duas vidas era essa a generosa dádiva da esposa: amar independentemente do mundo onde ele se encontrasse. Isto porque não é o tempo, nem a idade, nem a doença que dizem a verdade sobre as almas, mas sim o amor.
Dora Nunes Gago