O conceito de luso-brasilidade representa um desafio cultural envolto em dificuldades que advêm de uma relação colonial constantemente relembrada de forma direta ou indireta, quer pelo Brasil quer por Portugal. Porém, a produtividade subjacente ao diálogo luso-brasileiro sempre se sobrepõe; porquanto o reconhecimento dessa relação resulta do aprofundar da compreensão das identidades portuguesa e brasileira, a par do entendimento do espaço cultural transatlântico. Também é verdade que esse diálogo pós-colonial ressurge ao longo do século XX enquanto proposta das elites culturais e políticas. Os interesses que lhe deram forma foram, pois, assumindo diferentes vocações, ao sabor de ideologias nacionalistas ou solidárias, de valor afetivo ou puramente estratégico. No fundo, o que está em causa é a afirmação identitária consciente de uma especificidade transatlântica a dizer em português. As bases do refazer do diálogo luso-brasileiro podem então constituir-se através do processo de resolução de um passado traumático de natureza colonial contíguo a uma longa diáspora lusa no Brasil. Aliás, essa experiência migratória dará origem ao movimento inverso, o do regresso do chamado “brasileiro”[i] ou “torna-viagem.” Na tradição literária portuguesa dos últimos dois séculos, o torna-viagem do Brasil – à semelhança do da América do Norte – foi adquirindo um estatuto ambíguo, sendo identificado ora como brasileiro, ora como português.
Na verdade, as relações entre os Açores e o Brasil foram sedimentando ao longo de séculos e as redes sociais da emigração[ii] continuaram pelo século XIX e primeira metade do século XX a alimentar a renovação humana e cultural de um diálogo entre Portugal e o Brasil intermediado pelas ilhas açorianas.Os trabalhos brasileiros do académico açoriano Vitorino Nemésio dão conta da sua atenção àquele esforço transatlântico. Isto é, o roteiro brasileiro acompanha o autor ao nível da sua produção poética e ensaística, sem que nos esqueçamos do contributo do professor de Humanidades no Brasil e em Portugal ou o do comunicador ao nível dos média. Pela qualidade académica e sentida do seu discurso, Vitorino Nemésio afirma-se como uma voz credível do diálogo luso-brasileiro, constituindo a sua escrita um dos lugares privilegiados para se observar as relações culturais entre Portugal e o Brasil. É interessante acompanhar o balanço de um percurso pessoal de viagens ao Brasil que o autor confessa no seu Jornal do observador. O título desta publicação, Nemésio justifica-o, atendendo a essa sua função – a de observador intermediário – neste livro de crónicas publicadas entre 1971 e 1974 no magazine com o mesmo título. Em “Visitação brasileira,” o autor prepara-se para regressar ao Brasil em 1972 e o sentimento é de saudade d’”o cheiro à terra, ao capim, a cor das coisas, a toada da fala e até o número de ‘dibeis’ dos ruídos de bonde e de petardo…” (310). A Nemésio é naturalmente fácil o estabelecimento da contiguidade com a realidade paisagística do Brasil pela visão, audição, ou através do olfato. Ao mesmo tempo, a variante brasileira da língua flui no seu texto, numa expressão que evoca afetivamente a imagem urbana e ruidosa da cidade brasileira. Quanto aos brasileiros, considera-os “o nosso povo de lá”. A justificação para a proximidade com o Brasil, encontra-a nas memórias de infância na Ilha Terceira, num tempo em que se imitava com afeto o “di lá” por referência ao natural ou residente de longa data no Brasil (313).
Mas o tratamento da temática brasileira antecede em muito o período de viagens de Nemésio ao Brasil com início nos anos 50. Anteriormente, na década de 30, o Brasil já começara a fazer parte não só do seu discurso crítico, mas também da sua produção literária. Num ensaio intitulado “O âmago do Brasil” integrado em Sob os signos de agora de 1932 assume a relação ambígua que Portugal e o Brasil partilham, uma vez que, se é inegável a postura prevenida de cada um também o é o reconhecimento das ligações culturais entre os dois países (180). Mais adiante, o autor propõe-se a tarefa de buscar a essencialidade do ethos da nação brasileira, acabando por concordar que no todo o brasileiro estará ainda em formação (200). Prossegue então com a identificação de três tipos de habitat brasileiros – o urbano, o arcaico de herança colonial e o do sertão e da Amazónia -, para concluir que o terceiro tipo resultante da confluência de diferentes inclinações étnicas é o que justifica o “viés”[iii] do perfil brasileiro, que muito deve à plasticidade do índio contígua à necessidade de ordem do europeu colonizador. Afirma, então, a pertinência dos discursos literários e históricos para a compreensão do índio e do negro na formação do Brasil (200-201).
No âmbito da produção literária da década de trinta Vitorino Nemésio recorre às memórias do seu tempo ilhéu, quando o Brasil assumia um valor mítico para os açorianos, nomeadamente para os ilhéus do Grupo Central a que pertence a Ilha Terceira. Em “Negócio de pomba”- uma novela incluída n’A casa fechada de 1937 – narra-se a história do lusodescendente e terceirense Renato [Armondi] Ormonde, funcionário do Registo Civil, nascido no Rio de Janeiro em 1878. Certo dia, o jovem é visitado por João Lopes Palito, negociante da Baía, ele mesmo outro terceirense emigrado no Brasil. O ‘nêgócio’ que lhe vem propor o Palito é a notícia de uma herança brasileira na sequência do falecimento do pai de Renato no Brasil. A narrativa desenvolve-se então entre o sopro subtil de uma ilha sussurrante e o sonho de uma vastidão brasileira, onde se concentram as ambições pessoais e os oportunismos da comunidade, e de onde retornam terceirenses agora brasileiros – os filhos do Palito velho naturais das Tronqueiras – a anunciarem o milagre de uma herança, que representa progresso material para quem se encontra do lado de cá do Atlântico. Mas o desenho da desilusão começa desde logo a delinear-se no alerta do Palito torna-viagem, já abrasileirado na sua estratégia discursiva circular e reticente – “Sim, que o homem era Armondi e deixou cabedal, garanto eu. Agora se você é o herdeiro…,” lança o brasileiro, sugerindo a certeza pela sua garantia pessoal, a par da incerteza reticente decorrente do levantamento de uma dúvida (106). Isto é, o nome de família bem terceirense – “Armondi” (Ormonde) – não é garantia de nada, porque no lado de lá pode haver outro herdeiro.
Renato é órfão de mãe e de padrinho. Da sua identidade brasileira ressalta uma grande indefinição, a par de uma memória de infância desconfortável em relação à mãe, “sob o vestido preto que andava de quarto para quarto com uma mobilidade sussurrante, quase imperceptível e impondo, apesar disso, a sua presença multiplicada, toda no sentido da altura” (117). A ausência de uma figura paterna resulta da morte do padrinho e no anterior desaparecimento do pai -um desconhecido para este filho -, de quem talvez possa vir a herdar trinta contos. Renato é visto pelas outras pessoas como uma espécie de filho das ervas, o menino do seu padrinho. É melancólico e inseguro do ponto de vista afetivo, ressentindo-se de um envelhecimento físico precoce: “O acesso de asma passara-lhe, e agora apenas sentia uma aspereza no peito e a impressão tão sua conhecida, de uma velhice interior que o amolecia e adoçava, como se a idade do Farelo se tivesse trocado pela sua enquanto o escrivão dormia” (107). A fraqueza do jovem Ormonde resultará talv
ez da sugestão do seu passado brasileiro não resolvido, num país onde se encontra a sua origem imediata. O pai perdera-se da família, a mãe morrera no Brasil, o padrinho trouxera-o consigo do Brasil para a ilha há muitos anos atrás. Num meio ilhéu limitado, a insegurança e falta de ambição garantem-lhe uma vivência medíocre, mas segura,com o beneplácito do Sr. Farelo, seu chefe de repartição. Enfim, a única réstia de vitalidade do jovem Renato encontra-se na expetativa e num interesse surdo pelos mistérios do desejo sexual.
Por um efeito de contiguidade, a vivência da vila espelha a situação pessoal de Renato Ormonde, na medida em que a aparente dormência esconde um desejo excessivo pela novidade. As notícias do Brasil despertam aquele espaço físico e humano envolvido por “Uma luz de cripta própria do céu açoriano.” A concentração das cabeças e das respirações dos habitantes ilhéus é posta em relevo pela voz narrativa: “Voltaram à Rua do Poço. Novas cabeças curiosas despontavam às portas de duas ou três mercearias intervaladas de lojas gradeadas, de cujo fundo húmido e escurecido pela tarde chegava um bafor mofento de estendais de batata grelada e pipas sideradas nos canteiros” (105). O ambiente está pejado de uma humidade doentia responsável pela asma do jovem Renato, mas também pela sonolência do seu chefe, o Sr. Farelo.
As duas forças motrizes desta comunidade ilhoa são, pois, uma força centrífuga de apatia, por um lado, e a de um sopro diastólico trazido pelo fluxo brasileiro por outro. O interior da casa parece subjugar-se a uma decadência física gerida pelo desconforto da humidade, pela quase total escuridão apenas iluminada pelos candeeiros da Praça. Assim, pois, os “quartos abandonados aproveitavam a pausa para viverem sózinhos: um caruncho, vidraça dócil ao vento, o frio arrepiando as falhas de um buraco do sobrado” situada junto à escuridão da praça e vigiada pelas pombas em silêncio pousadas abrigadas pelos agulheiros da parede exterior (137).
[i] O Tenente-Coronel José Agostinho, na sua comunicação “Dominantes histórico-sociais do povo açoriano” apresentada no decorrer da II Semana de Estudos dos Açores, conclui acerca do “brasileiro” torna-viagem: “Na minha mocidade eram os ‘brasileiros’ aqueles que mais contribuiam para fomentar a riqueza desta ilha [Terceira] construindo casas, comprando terras e quintas, empregando trabalhadores, ligando-se eles e seus familiares, a gente pobre cujo nível de vida assim se elevou.” (Livro da II Semana de Estudos dos Açores 152)
[ii] A título de exemplo, na “Relação dos emigrantes açorianos para os Estados do Brasil, extraída dos processos de passaportes da Capitania Geral dos Açores e doutras fontes,” do nº 9 do Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, de entre muitos outros, emigraram no ano de 1836: “José Gonçalves, casado, de Angra, pobre, ao Rio de Janeiro, para a companhia de um tio. Tinha 40 anos de idade, estatura regular, rosto redondo, cabelo e sobrolhos pretos, olhos castanhos, nariz e boca regulares, côr trigueira”; “Francisca Laureana, da Ribeira Sêca, ao Rio de Janeiro, com seus dois filhos menores de 12 anos, João e Maria, para a companhia de seu marido. Tinha 30 anos de idade, estatura alta, rosto redondo, cabelo e sobrolhos pretos, olhos castanhos, nariz e boca regulares, côr trigueira”; “Manuel Barcelos, casado de Angra, ao Rio de Janeiro, para a companhia dum padrinho que o quer proteger. Tinha 30 anos de idade, estatura regular, cabelo e sobrolhos castanhos, olhos castanhos, nariz e boca regulares, côr trigueira”; “João Vieira de Menezes, de São Sebastião, ao Rio de Janeiro, com sua mulher, para a companhia dum primo que o quer proteger. Ele tinha 24 anos de idade, estatura alta, rosto redondo, cabelo e sobrolhos pretos, olhos castanhos, nariz e boca regulares, côr natural” (79).
[iii] No ensaio “O âmago do Brasil”integrado em Sob os signos de agora (1932), Vitorino Nemésio sugere: “Permito-mo propor a palavra viés para exprimir a duplicidade da têmpera brasileira no seu tipo pejorativo, mas que é porventura aquele que está destinado a encarnar, com o trabalho do tempo e de cultura, o que há de essencial, de intransferível, no ethos da nação” (199). E algumas linhas depois, destaca a complexidade inerente à definição do “brasileiro:” “E isto porque o brasileiro nem é o português transladado, nem o negro levado à força, nem o índio que espreita o drama encenado no ambiente tropical por uma empresa adventícia, que ele considera e encara como uma tournée extravagante, nem o mestiço caldeado com várias forjas, nem sequer o brasileiro condicionado por latitudes tão díspares e combinações irridentes. Graça Aranha o escreveu: ‘o brasileiro vive o poema da aspiração’ (A Esthetica da Vida). E Renato Almeida: ‘Somos, antes de tudo, um povo que se ignora.'” (200).
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