(…cont.)
A pouco e pouco os seres humanos parecem começar a receber a atenção do narrador. E então é dado o poder da palavra ao ilhéu para que discuta as notícias do Brasil. A imagem do país distante vai ser dissecada por homens com um discurso hipócrita perante a vida. Renato retem do Brasil uma estranheza de ordem fonética, ao lembrar-se de uma curiosa “chalaça ininteligível do Palito dita à janela do quintal, diante dos agulheiros chocos do peso da tarde: ‘Nêgócio di pomba é disàriàtivo e pidemàticoso” (172). O facto é que ele possui uma visão enviezada “daquela gentinha do Rio – leiteiros, marçanos de botequim, garotos da carreta das compras nas ruas movimentadas pelo alvejar das flanelas matutinas -, ficara vagamente arrepiado com a familiaridade do Palito.” E, no entanto, o desejo material pela herança suaviza na sua mente aquele país estranho (130).
A opinião dos ilhéus acerca dos torna-viagem revela-se nos comentários ressentidos aduzidos do reconhecimento do progresso material, em comparação com o isolamento falido da ilha: “- Todos os burros têm sorte! – filosofou o Farelo. – Parece impossível como ainda se fazem fortunas no Brasil! Vão daqui uns pategos e vêm de lá uns lordes. Não posso com esta gente!” Este é o comentário do funcionário público, mas o político regional dos anos 30 pensa o mesmo. Ele é um exemplo das elites corruptas próximas do povo e indiferentes às suas necessidades. Daí que a leitura de “Negócio de pomba” seja um contributo para o conhecimento daquele tipo de mentalidade: “- Deixe-os lá. Sempre têm algum préstimo! – atenuou o doutor acariciando a barbicha. […] – O Júlio Palito tem-me prestado bons serviços na política do distrito. Lá fez uma escola nas Tronqueiras, dois chafarizes, fora o dinheiro que manda para funções e festarolas” (110). Na verdade, a interação entre o brasileiro torna-viagem e os locais mede-se por uma exploração de parte a parte, na medida em que os ilhéus pretendem tirar partido da abastança brasileira, e o emigrante, por sua vez, investe na realização de um projeto de vaidade e de lucro pessoal -no final de tudo certamente o Palito terá obtido uma percentagem da herança de Renato. Isto é, o dinheiro terá ficado distribuído pelo herdeiro do Brasil, pelo Palito, e só uma pequena parte foi herdada pelo filho legítimo. Numa interpretação que pode circunscrever a essência humana ao desafio da tradução, poder-se-á afirmar que o indolente e açorianizado Renato Ormonde não se apodera da riqueza brasileira por não ter conseguido perceber a chalaça do “Negôcio di pomba” do Palito; ou seja, na impossibilidade da tradução encontra-se a moral da história. Na verdade, o movimento migratório terá proporcionado um diálogo entre os Açores e o Brasil implantado num sistema de heranças e gerido por ambições que desaguaram muitas vezes em fortunas adquiridas de forma pouco honesta cá e lá. Também o pai de Renato enriquecera, traíndo Taboca, o seu velho patrão.
Neste “Negócio de pomba,” a proposta de um encontro luso-brasileiro enfrenta obstáculos que têm a ver com a dificuldade do lusodescendente Renato [Armondi] Ormonde em enfrentar as memórias pessoais de uma longínqua infância carioca. Daí que o seu investimento final se concentre todo no presente de Ludres e da ilha. É, no entanto, a intermediação da ilha para o conhecimento do Brasil que permite a continuidade do mesmo diálogo para outras personagens. O Sr. José Borba e o Lusiário auferem da ligação ao Brasil; o primeiro aprecia a extensão territorial do Brasil face à Ilha (143) e o segundo tenta enganar a inveja alheia, “[…] sabia levar muito bem a água ao seu moinho. […] Custava-lhe muito a viver; todos enchiam a boca com o que ele recebia do Brasil, e afinal era pobre, nunca tivera ambições” (171). O discurso indireto livre do Lusiário descobre e esconde a sua felicidade brasileira numa estratégia sensata de quem vive o receio da inveja própria dos círculos restritos.
A atribuição de um lugar à “ilha açoriana” no diálogo com o Brasil será uma constante nos textos posteriores de Nemésio, porquanto a ilha é o ponto de equilíbrio da sua viagem real e escrita do Brasil. Em “Restos de selva” do Jornal do observador, fazendo uso dos apontamentos tirados aquando da preparação de Caatinga e terra caída, Nemésio afirma acerca de uma rede com que fora presenteado no Brasil vinte anos antes: “Se não fosse pedante e eu não preferisse deixar a minha rede à família, pedia que me amortalhassem nela. Com um púcaro de barro ao lado, mas não de cerâmica marajoara: de barro de Santa Maria, a ilha dos cagarros, que faz a água mais fresca” (321). Para o autor a inserção do detalhe açoriano no elemento brasileiro acontece com naturalidade. Santa Maria é a “Ilha” e Nemésio não se coíbe de colar elementos açorianos aos seus apontamentos brasileiros. Aliás, a sobreposição da ilha acontece também para se dizer momentos difíceis de uma comunidade luso-brasileira. A título de exemplo, na crónica “Pobre de Terceira” do Jornal do observador a mesma sobreposição entre a ilha e o Brasil é a oportunidade para se falar da situação do imigrante açoriano que não deu certo. Otília é uma favelada lusodescendente, pobre de terceira classe – “A neta do Messias da Má-Merenda é uma pobre de Terceira. Está morrendo aos pedaços” (337). A crónica traduz essa tensão de um diálogo que já não interessa. O texto é construído pelo forçar de discurso direto por parte do visitante ilustre e o obstáculo de uma consciência em discurso indireto livre que já não tem tempo para acreditar num futuro: “O doutor namorava para a tia dela em menino. Botava coroa de flores no cabelinho da moça, tudo bobagem, vamos dizer; mas já se tem visto gente pobre ficar de repente herdada, e Otília não quer contrariar. Sua barriga doendo, […] Barriga inchada, de cancerosa” (336).
Mas, a fusão não significa uma cópia fiel dos valores lusos, pois, em simultâneo existe na escrita nemesiana a consciência de uma forma brasileira resultante do apego aos padrões culturais genuínos. Já em relação a tradições textuais, Nemésio é peremtório: “A frase, o rifão, o conceito, as próprias figuras lendárias – Porcina, João de Calais, o Camões de olho cego e o D. Sebastião de manhã de nevoeiro -, todo o nosso património de tradição e origem se comunicou ao sertão e à mata de Nordeste” (162). Em “Porcina, vampe da rampa,” o autor explora a especificidade do Brasil. Daí que defenda a variedade combinatória que aconteceu em relação à tradição portuguesa chegada ao Brasil em 1500. Nemésio parte da observação das realizações culturais, as quais recordam constantemente a presença de influências portuguesas medievais no Brasil:
Dizer pois que o Brasil carece de Idade Média é tornar ao pé da letra o ano de 1500 como arranque histórico do país. Não. A idade Média veio para aqui com a alma antiga e os costumes arcaicos dos aventureiros de bugios e do pau-brasil da costa, e logo com os vaqueiros de Torre de Garcia de Ávila internados nos rios e nas chapadas do sertão. Fala-se nos arraiais do interior e nas fazendas pé-de-serra a mesma língua de base dos pastores natalícios dos autos de Gil Vicente, naturalmente modulada pelas variações de flora e fauna e por um trem de vida diferenciado há quatro séculos. Mas, no fundo, é a mesma conversa. E até a cantiga é a mesma… (162)
No diálogo com o Brasil, Vitorino Nemésio assume uma voz e uma escrita[1] intermediárias, pelo que consciencializa os processos pessoais de ordem afetiva nas reflexões acerca do seu projeto pessoal e profissional nada atreito a uma visão proprietária da cultura, antes sim, solidária. Os textos brasileiros deste autor esforçam-se por compreender o espaço da memória de infância que continua a fazer parte dos seus Açores, graças ao convívio com conterrâneos imigrantes no Brasil. E muito mais do que isso, o Brasil é observado e sentido pelo académico português interessado em promover o contrato transatlântico lusófono de cariz cultural numa acepção pós-colonial. Isto é, a insistência na presença do elemento português na cultura brasileira não se prende com motivações de reinol, é antes um hino a este novo mundo individual, mas lusodescendente, para além de tudo o mais que define o Brasil. E neste diálogo transatlântico torna-se imprescindível a mediação dos Açores de Nemésio.
[1] O projeto académico e artístico de Vitorino Nemésio é indissociável da presença do autor junto dos meios de comunicação social.
(Texto inédito)
Irene de Amaral É natural de New Bedford, Massachusetts, EUA. Viveu em S. Miguel, Açores, entre 1973-1999. Reside nos Estados Unidos desde 1999. Possui uma licenciatura em Ensino de Português e Francês pela Universidade dos Açores e um mestrado em Supervisão do Ensino de Português pela Universidade de Aveiro. Atualmente, é doutoranda em Estudos Luso-Afro-Brasileiros na UMASS Dartmouth, EUA. Os seus interesses de investigação centram-se na literatura e cultura açorianas.