Voltando atrás
Urbano Bettencourt
Ainda não havia alterações climáticas, mas a «Primavera de 1972» que aparece como referência temporal na capa de raiz de mágoa tinha pouco de Primavera, talvez lembrasse mais o Outono e a melancolia. Mas era o fogo dos trópicos aquilo que a passos largos se aproximava.
raiz de mágoa, o livro, não teria ganhado forma se não fosse a insistência e, depois, o cuidado paternal de Manuel Pereira de Medeiros, que acompanhou a sua gestação técnica nas oficinas da Culdex, em Setúbal, como se fosse obra sua. Os poemas andavam comigo, alguns desde os dezassete anos, mas nesse início de 72 tudo se tornara urgente, com África e a guerra no horizonte imediato – os fantasmas de uma geração aflita. O livro poderia ficar como uma despedida ou como uma espécie de Penélope verbal à espera do ausente – em qualquer caso, alguma coisa que se deixava, nomes escritos numa pequena pedra sobre o cais da incerteza.
Das peripécias da sua organização interna, convém lembrar agora o seguinte: eu cedera parte dos poemas a um amigo para que os lesse e sugerisse correcções, mas as andanças de cada um acabaram por separar-nos e, pior do que isso, quebraram o contacto entre nós. Tive de recuperar de memória alguns poemas e incluir no livro letras que eu escrevera para que o Dionísio Costa, compositor e meu amigo, as revestisse musicalmente (destas, sobreviveu a «Canção dos trigais», incluída pelo Grupo Coral das Lajes do Pico no CD Música em Tempo de Festa ). Alguma heterogeneidade discursiva, portanto, que motivaria uma referência acre ao livro num jornal lisboeta; mas um remoque literário de Lisboa lido mais tarde nos matos da Guiné não passava de uma extravagância de outro planeta, era literalmente um zero à esquerda.
Num tempo em que vivemos sob a ditadura dos orçamentos, resta ainda acrescentar que o livro custou 2.000$00, metade da quantia com que eu tinha sido abonado para comprar roupa que me permitisse andar decente na guerra. E vendia-se a 12$50.
Quarenta anos depois, do livro de 72 resta o quê?
Durante muito tempo, «contactei» com ele apenas através do poema «De Mafra, com mágoa», que Pedro da Silveira incluíra na sua Antologia de Poesia Açoriana. Era talvez o poema mais assertivo sobre o tempo que me fora dado viver, com um final optimista em excesso e ingénuo (reconheço hoje, à luz dos acontecimentos e escritas posteriores); mesmo assim, ainda consigo recolocar-me nesse tempo e rever-me nalguns dos seus versos:
Mafra é Mafra/ e eu sou livre./Ou não./ (Meus escravos de áfrica plantados no brasil/ escavando o ouro com a coronha das G3).
(…)
Mafra / é Mafra/ e eu / sou eu. / Por detrás da máscara eu lá estou/ sem ódios, nem balas, nem guerras/ despido / e com um ramo de cravos / em cada mão.
Relendo-o agora de ponta a ponta, descubro que era já um livro contaminado pela sombra da guerra, que o atravessa em diversas figurações, mais discretas umas, menos veladas outras. Assim sendo, penso que ganha um sentido particular esta colectânea de textos publicados ou escritos ao longo de quarenta anos, que é também uma espécie de balanço, pois permite avaliar o rasto da guerra nos meus livros. Creio que talvez seja possível encontrar outras crónicas guineenses no jornal A União, onde alguns dos poemas de «Remuniciar o tempo» foram, aliás, publicados; «Da ilha carn(av)al» é o único que guardei desse tempo, pois nem todos os jornais, regularmente enviados pelo meu querido amigo Santos Barros, conseguiam chegar ao seu destino. Em relação ao grupo de poemas escritos na Guiné, respeitei escrupulosamente o discurso e os dispositivos (orto)gráficos e poéticos originais, tendo apenas substituído pelo primeiro verso a numeração que titulava alguns dos poemas.
Optei, no conjunto, por uma organização cronológica, que permite uma observação simultânea das transformações da escrita e do olhar sobre a experiência que ela refigura e transmuta. Interessa ainda dizer que não estamos aqui perante as memórias da guerra; para isto teria sido necessário o registo diário, o apontamento pontual, coisas que por opção não fiz. Isso não que dizer que a memória não ande por aí ou que não seja possível tropeçar em alguns dados referenciáveis – mas mesmo estes acabam por diluir-se no sentido global e mais vasto dos textos.
Para ser totalmente abrangente, um termo como África devia reunir também o conjunto de textos cabo-verdianos incluídos em Lugares sombras e afectos. Mas, embora consequência indirecta da Guiné, por via da música e da voz de Bana, Cabo Verde fica-me num outro lado da vida e do coração, bem distante daquele que aqui se expõe ou se esconde.
E sobre o livro, é apenas o que quero dizer.
(Porto, Agosto de 2011)
Uma palavra final, e especial, já em 2012, de agradecimento ao meu amigo Urbano pela belíssima capa e contra-capa que ele criou. É uma primeira leitura, perspicaz, do meu livro, que o acompanhará a partir de agora, ampliando a ambiguidade de sentidos que o título já propunha.
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Urbano Bettencourt, Açoriano,natural da Ilha do Pico. Professor da Universidade dos Açores. Ensaísta. Poeta.