Hoje já ninguém fala nem escreve sobre as viandeiras. Mas elas fizeram parte dos mais
antigos regimentos: ajudavam os militares quer em tempo de guerra quer em tempo de paz,
lavando-lhes as fardas, remendando a roupa, fazendo comida e, muito principalmente,
lembrando-lhes que eram homens…
Era no tempo em que se metiam mulheres dentro das casernas, e disso dá conta o nosso
cancioneiro. Atente-se nestas duas quadras:
cancioneiro. Atente-se nestas duas quadras:
I
– Onde leva a moça,
senhor capitão?
– Levo-a roubada
p´ró meu batalhão.
II
– Onde leva a moça,
senhor coronel?
– Levo-a roubada
para o meu quartel.
Para mim, a velha Casimira foi uma espécie de viandeira. Conheci-a nos anos 60 do século
passado, ali para os lados dos Quatro Cantos, em Angra do Heroísmo, era ela uma criatura
geniosa, sempre descomposta e desgrenhada, corpo flácido, a pele macilenta, os olhos encovados,
os lábios mirrados e trocistas…
passado, ali para os lados dos Quatro Cantos, em Angra do Heroísmo, era ela uma criatura
geniosa, sempre descomposta e desgrenhada, corpo flácido, a pele macilenta, os olhos encovados,
os lábios mirrados e trocistas…
Havendo praticado a mais velha profissão do mundo, gabava-se de, quando nova, ter sido
uma das mulheres mais belas da ilha Terceira, e, com amarga saudade, dizia a todos que fora
possuída por metade da população masculina de Angra: comerciantes, funcionários públicos,
operários, pescadores, caixeiros-viajantes e magalas do BI 17.
uma das mulheres mais belas da ilha Terceira, e, com amarga saudade, dizia a todos que fora
possuída por metade da população masculina de Angra: comerciantes, funcionários públicos,
operários, pescadores, caixeiros-viajantes e magalas do BI 17.
Casimira saciou também a fome de americanos da Base das Lajes, de marinheiros de
fragatas e de outros aventureiros desembarcados no Porto de Pipas. Foi escrava do prazer, rainha
do deboche, travando inúmeras batalhas nos lençóis enxovalhados de maridos respeitáveis, mas
insatisfeitos por suas legítimas esposas…
fragatas e de outros aventureiros desembarcados no Porto de Pipas. Foi escrava do prazer, rainha
do deboche, travando inúmeras batalhas nos lençóis enxovalhados de maridos respeitáveis, mas
insatisfeitos por suas legítimas esposas…
Entregando-se a legiões de homens e jovens mancebos, não conheceu senão a profunda
solidão. Foi atriz de si própria e fez da sua vida uma farsa e um disfarce, encenando sempre falsas
composturas e falsos orgasmos… Ela, a fêmea fácil, a órfã de pai e mãe e sem família. Ela, a puta
arrastada pela má vida, chamando os homens para o vão das portas. Ela, a sempre desejada e a
sempre repelida. Ela, a sem vergonha, o escarro da vizinhança, o vómito da sociedade, bocejando
o tédio de ser mulher necessitada de amor. Houve só um homem que amou por dentro da sua
solidão, mas ele deixou-a e embarcou para a América. Todos, todos saciaram a sede de seus seios
em noites de sexo sem ternura. E depois partiam, deixando-a extenuada, no abandono de uma
nota de 50 escudos.
solidão. Foi atriz de si própria e fez da sua vida uma farsa e um disfarce, encenando sempre falsas
composturas e falsos orgasmos… Ela, a fêmea fácil, a órfã de pai e mãe e sem família. Ela, a puta
arrastada pela má vida, chamando os homens para o vão das portas. Ela, a sempre desejada e a
sempre repelida. Ela, a sem vergonha, o escarro da vizinhança, o vómito da sociedade, bocejando
o tédio de ser mulher necessitada de amor. Houve só um homem que amou por dentro da sua
solidão, mas ele deixou-a e embarcou para a América. Todos, todos saciaram a sede de seus seios
em noites de sexo sem ternura. E depois partiam, deixando-a extenuada, no abandono de uma
nota de 50 escudos.
Casimira chegou a lavrar esperanças e esteve mesmo para ser “integrada socialmente”.
Logrou um emprego digno como rececionista de uma pensão e, por algum tempo, teve uma vida
séria e honesta. Porém, a corrupção reinante arrastou-a para a inquietação e para o inconcebível
peso de homens sombrios e vorazes que a aniquilaram…
Logrou um emprego digno como rececionista de uma pensão e, por algum tempo, teve uma vida
séria e honesta. Porém, a corrupção reinante arrastou-a para a inquietação e para o inconcebível
peso de homens sombrios e vorazes que a aniquilaram…
“Velha como as carochas”, ela ia invariavelmente para o portão do Liceu e metia-se com os
rapazes, dizendo: “Perna boa! Perna boa é a da Casimira!”. O contínuo telefonava para a
esquadra. Vinha o polícia e dizia:
rapazes, dizendo: “Perna boa! Perna boa é a da Casimira!”. O contínuo telefonava para a
esquadra. Vinha o polícia e dizia:
– Casimira, vais p´rá cadeia.
Então ela aproximava-se do agente e, com um sorriso lascivo, respondia:
– Ah, amor, só se for para a cadeia dos teus braços!
A estudantada ria-se. Sem saber que, por vezes, a vida é uma ilusão perversa.