Acabo de ouvir, com genuína satisfação, Falas & afetos, o último disco de Aníbal Raposo. E apercebo-me que, nas vinte canções aqui gravadas, sobressai aquilo que é o registo de marca deste “song writer” micaelense: o amor, que ele canta com apurado sentido interpretativo e espessura emocional:
“Nós somos, tu e eu, dois sóis ardentes
De fogo iluminados, consumidos,
Em pelejas de amor ledas e quentes,
Explodindo na folia dos sentidos”. (…)
Da Rocha da Relva, Aníbal Raposo escreve para o mundo. Numa poética sensorial, colhendo, na fajã da ilha, as palavras exatas e essenciais e navegando musicalmente num oceano de emoções, de afetos partilhados e de sensualidades apetecíveis…
Melodista com uma certa tendência para o compasso ternário (que é o ritmo do coração), Aníbal Raposo tem vindo a construir, de forma coerente, contínua e continuada, uma obra musical que abre novos rumos e novas sonoridades à música que hoje se faz nos Açores. De resto há todo um lastro musical que enforma este engenheiro-trovador, desde os grupos de que fez parte e com boa colheita (“Construção”, “Rimanço” e “Albatroz”), passando pelos incontornáveis temas que escreveu e compôs para algumas das mais porfiadas séries da RTP/AÇORES.
Se tivesse vivido em plena Idade Média, Aníbal Raposo teria sido certamente jogral, trovador ou menestrel, já que ele é, simultaneamente, poeta, cantor e músico. Um poeta-cantor-músico que chegou à poesia por via da tradição oral. Por isso há nele a “linguagem que canta” (Verlaine) e o tal “ouvido que escreve” (expressão do modestíssimo subscritor destas linhas). Por isso sente-se, na sua voz, o pulsar da expressão lírica portuguesa, com raízes fundas e profundas no cancioneiro açoriano. À sua arte poética (que não deve ser confundida com a capacidade inata que ele tem de versejar) alia-se uma manifesta competência musical. Patente nos temas deste disco – bem carpinteirados de rigor na métrica e no verso.
Com aprumo conceptual, Aníbal canta a roda da sorte que é a vida de cada um de nós, valorizando, com vogais cheias e subtilezas de uma boa dicção, cada palavra e cada sílaba, no seu fraseado, nas suas pausas e transições, nas suas subtis valorizações prosódicas, na sua maneira inconfundível de atacar a linha musical, a que não é alheia a versatilidade dos recursos vocais de que dispõe. Em lirismo certeiro, canta 12 poemas seus, 2 de Natália Correia e 1 de cada um dos seguintes autores: João de Deus, Vinícius de Moraes, Isabel Fidalgo, Mia Couto, Urbano Bettencourt, Gabriel Mariano e António Bulcão.
Falas & afetos cruza estilos e traz-nos uma variedade de registos numa interessante viagem pelo imaginário açoriano, com paragem obrigatória na música popular portuguesa e bem conseguidas escalas no pop, blues e samba. Com boas sonoridades e bem conseguidos arranjos musicais do multi-instrumentista Eduardo Botelho, Aníbal tem como convidados Raul Damásio e Mário Jorge Raposo (vozes) e os músicos Williams Maninho Nascimento, Paulo Vicente, Cristóvão Ferreira, Philip Pontes e Fábio Cerqueira.
O resultado é um disco consistente e de altíssima qualidade, onde cabe todo o nosso imaginário e toda a nossa memória coletiva que Aníbal Raposo agarra com talento, sensibilidade e bom gosto.
P. S. Aníbal Raposo é um amigo da Graciosa, onde nos últimos anos tem passado férias. Escreveu e musicou o bonito tema “Carapacho” que pode ser ouvido online.
Horta, 22/01/2021