“Ando há sessenta anos a “escrever” este livro”. (pág. 17)
João C. Bendito
Nunca como agora me pareceu tão verdadeira a (emblemática) frase do escritor Daniel de Sá: “Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”.
Não é impunemente que se nasce numa ilha onde a terra é pequena, o mar é vasto e o sonho é enorme. Emigrado nos Estados Unidos da América, João Celestino Bendito saiu um dia da ilha, mas a ilha não saiu dele. Isto significa que a ilha navega dentro dele, tendo nele deixado uma memória indelével e retroactiva. Território de magia, beleza, sedução e mistério, a ilha é o microcosmo de referência deste autor, é o epicentro do seu imaginário, isto é, o seu roteiro sentimental e afectivo. Por isso a ilha será sempre o seu regresso a casa, o seu retorno às origens.
E, ao regressar à ilha (a real e a mitificada), João Bendito busca a harmonia, os cheiros da terra, a unidade original. Até porque, bem vistas as coisas, a ilha é o lugar onde nunca se chega, e de onde nunca se parte em definitivo. Dito de outra maneira: a ilha que se abandona nunca é a mesma ilha a que se regressa. Poder-se-á aqui aplicar a lei do eterno retorno: tudo volta ao princípio, tudo volta ao seu primordial. Porque na ilha, espaço matricial e mítico, estará sempre o encanto da infância e adolescência enquanto paraísos irremediavelmente perdidos.
Accionando precisamente os retroactivos da memória, isto é, as suas recordações pessoais, o terceirense João Bendito (d)escreve, em Barro Vermelho- Ilha Branca, histórias da Graciosa (Bridge Books, San Jose California, 2019), momentos da sua meninice vividos no microcosmo da Graciosa, ilha onde passava férias de Verão em casa dos avós graciosenses (na vila de Santa Cruz, lugar da Calheta), entre 1958 e 1968.
A obra reúne um conjunto de admiráveis crónicas que, lidas em sequência, constituem um vivo testemunho para memória futura. Trata-se, antes de mais, de uma declaração de amor que o autor presta à sua família, à ilha Graciosa e suas gentes. Aliás, um belo livro que eu, graciosense com muito orgulho e saudade, li com emoção e comoção.
Evocando, com nostalgia e em cinematográficos flashbacks, um tempo distante onde habitam as primeiras rajadas de vida, as primeiras emoções e sensações, sonhos e angústias, perplexidades e dúvidas, medos e contradições, João Bendito fala-nos de ritos iniciáticos (a começar logo pela viagem Terceira/Graciosa no “Santo Amaro”), do despertar para o mundo e para o conhecimento das coisas A uma relação inocente e fascinada com os outros, com quem estabelece laços de surpresa e contemplação, de fraternidade e cumplicidade (o avô Guilherme, a avó Delminda e o Nelson “Rato”, por exemplo), o autor recorda alguns graciosenses incontornáveis que, atravessando várias gerações, fazem hoje parte do imaginário e da memória colectiva graciosenses: o José Berto, o Manuel “Bacarau”, o “Faia”, o Gabriel “Rato”, o Cirino, o Tamagildo, o Manuel “do Sul”, o mestre Aluízio, a Esmeralda “Cambrinhas”, Ti João Miguel, o “Ventura”, o “Traquitana”, o Alexandre “Tiriri”, o Oriolando, o sr. Luís Coelho, o sr. Belchior, projeccionista de sonhos, o baleeiro Casimiro, o Diógenes das camionetas, o sr. Gabriel Melo, o vigia Francisquinho, o padre José Simões, o comerciante Juvenal Martins, o mergulhador Alziro, o carteiro Rufino, a cabeleireira Maria Ildete, o moleiro Manuel “Rei” e tantos outros. São pessoas que ele resgata e recupera do negrume do esquecimento, dando-lhes reconhecimento e valor: traça-lhes o retrato físico e perfil psicológico, narrando-lhes as histórias, as aventuras, os acontecimentos, as peripécias e outros feitos.
De forma ternurenta, minuciosa e reflexiva, o autor revisita essas figuras marcantes da Graciosa – gente muito humana, de estratos sociais distintos, que marcou a diferença e deu muito de si aos outros. São graciosenses com quem a geração de João Bendito (que é também a minha) muito aprendeu. Nunca esqueceremos esses concidadãos que iluminaram as nossas vidas e que, vivendo numa ilha marcada pelo isolamento, souberam irradiar verdade, sabedoria, autenticidade e muita generosidade. E tudo isto numa altura em que a Graciosa era um mundo despojado, de poucas coisas, por isso mesmo tornadas essenciais.
Por conseguinte, Barro Vermelho – Ilha Branca celebra a amizade e oferece-nos apetecíveis narrativas envoltas em atmosferas de familiaridade e afectividade que resultam de experiências profundamente vividas e sentidas pelo seu autor. Denotando grande poder de observação e extraordinária pormenorização, João Bendito possui uma capacidade descritiva e narrativa que deixa antever o ficcionista (adiado) que há dentro dele.
Há, neste livro sobre a condição humana, uma vibração afirmativa, uma memória telúrica e uma capacidade evocativa que escreve João Bendito, em quem se sente uma genuína vontade de reconstituir o real para sobre ele poder efabular.
Cinco décadas depois, sabe bem olhar para trás, sem saudosismos, e, nessa pausa do tempo, recuperar algum apaziguamento interior que os anos foram transformando e subvertendo. Sem o passado nada somos, nada poderemos ser nunca. “Quem escreve, escreve-se” (Julia Kristeva). É certo que não há literatura sem geografia, e é por demais sabido que ninguém escreve no vácuo e sem imaginário. Por isso há aqui a captação de um certo “espírito do lugar”: a vila de Santa Cruz da Graciosa, seus usos, costumes, festejos e tradições, suas vivências profanas e religiosas.
Pelas 196 páginas desta obra, ilustrada com 70 fotos a preto de branco (que é a cor do passado), perpassam boas recordações de bons tempos que não foram tempos bons, pois que vivendo as limitações de uma sociedade fechada sobre si mesma, cedo os graciosenses se defrontaram e confrontaram com o subdesenvolvimento, a pobreza, a intolerância e todas as chagas sociais, políticas e culturais que nos deixou o mísero Estado Novo.
De resto, ao ler estes belíssimos nacos de prosa (pontuados com versos de Virgílio, Vitorino Nemésio, José Berto, Fausto, Manuel Jorge Lobão, José Francisco Costa, Marcolino Candeias, Chico Buarque, José Afonso, Rui Duarte Rodrigues, João Ilhéu e do Cancioneiro Popular dos Açores) tive como que a sensação de estar a ver um filme ao retardador, pois que neles pressenti o sonho a decompor-se e a refazer-se – em imagens de grande pureza e limpidez, num enfocamento visual que me agradou sobremaneira. Estamos perante um livro singular, envolvente e tocante. De plena espessura evocativa e atenta observação do humano, escrito por quem, ainda e sempre, vê as ilhas com os olhos da memória e da distância.
Temos escritor.