O Carnaval, festa pagã por excelência, é a nossa forma de renunciar à banalidade do quotidiano e à mesquinhez da nossa vidinha… E, por isso mesmo, há na festa carnavalesca uma dimensão catártica que, nos tempos que correm, se prende com o drama das nossas frustrações históricas, as inquietações do nosso presente e a angústia do nosso futuro incerto.
É tempo de exorcizar a memória. Por isso no Carnaval não nos mascaramos, bem pelo contrário: desmascaramo-nos, tiramos a máscara, deixamo-la cair.
Olhamos à nossa volta e vemos que o mundo está efectivamente marcado por medos e ameaças, desejos e renúncias, conflitos e crises de vária ordem. Ora, durante o Carnaval a gente esquece e faz por esquecer tudo isto. Até porque a vergonha sempre tolheu em nós a ação. E isto, em parte, devido ao peso da religião, pois que nove séculos de doutrina cristã ainda nos pesa nos ombros.
Nós, açorianos, temos uma tendência quase inata para sermos introvertidos, virados para dentro de nós próprios e um pouco desconfiados em relação a tudo o que vem de fora. A nossa insularidade, aliada a uma religiosidade gerada no terror sagrado de sismos e vulcões, contribuíram para que o ilhéu se tornasse um ser manso, resignado e paciente. Ora, o Carnaval é um bom pretexto para romper com tudo isto.
Etimologicamente Carnaval, do latim “carne vale”, quer dizer “adeus à carne”. Isto significa que antes de dizer adeus aos prazeres da vida e antes que venha a Quaresma – tempo de jejum, penitência e abstinência – é preciso aproveitar a galhofa destes escassos mas gloriosos dias, durante os quais tudo é tolerado e permitido.
Venha, pois, a animação carnavalesca! Venha o bulício, a algazarra, a troça, o espírito, a graça, a pilhéria, a chacota!
Venham meninas e meninos vestidos de dominós de renda lampejante!
E venham pierrots e arlequins vestidos de cetim preto e branco, com seus leques e ramalhetes. E venham os palhaços ridentes e patuscos, no delírio da cambalhota e na palmada certeira! E venham as rainhas, os príncipes, os coelhos, as damas antigas, as bonecas, os vikings, as bailarinas, os valetes, as gatas borralheiras, os cavaleiros, os cow boys, os árabes, a cleópatras, os hippies, as sevilhanas, os super-homens, os zorros, os piratas e todos os heróis de banda desenhada.
Venham as danças de espada, as danças de pandeiro e os bailinhos na ilha Terceira. Venha a batalha das limas na ilha de São Miguel. Venham os bailes de máscaras em Santa Maria. Venham as danças de cadarços na ilha do Faial. Venham os assaltos privados na ilha do Pico. Venham as danças de entrudo de São Jorge. Venham as danças de arcos das Flores e do Corvo. Venham os animadíssimos bailes de salão da Graciosa. E venham todos os bailes de todas as ilhas, os concursos de fantasias de todas as ilhas, os desfiles de rua em todas as ilhas!
O Carnaval está no salão e está na rua. Com animação, convívio, alegria e, acima de tudo, muita criatividade.