(que deve estar a dar coices na sepultura…)
Aos 81 anos de idade Cristóvão de Aguiar (1940-2021) deixou de “escreviver”. Mas não contem comigo para etiquetas funerárias e panegíricos post-mortem. Eu, que em vida do escritor recenseei todas as suas obras, não me misturo com o coro daqueles que, agora que ele é um morto exemplar, dócil e moldável, aproveitam o de profundis e andam por aí a tecer ladainhas e litanias de exaltação – esses mesmos que, antes do silêncio final do autor de Raiz Comovida, nunca disseram nem escreveram uma só palavra sobre os seus livros. Hipocrisia tamanha!
Mas já se sabe: a necrofilia literária instituiu-se em Portugal, havendo entre nós quem continue a promover aquilo a que Augusto de Castro chamou “o culto do osso”… Só depois de morto é que o autor terá a sua consagração. As Academias, por exemplo, são danadas para o requiem. As suas carpideiras apressam-se agora a reconhecer o talento literário de Cristóvão de Aguiar quando antes o silenciaram. O mesmo aconteceu com Dias de Melo (1925-2008), e também na altura reagi, desta mesma forma, nos jornais.
A morte dos autores facilita a vida de certos estudiosos, e agora sim: Cristóvão de Aguiar, mitificado pela morte (ele que em vida foi homem rebelde, arrebatado, insolente e usava as palavras como armas de arremesso), passou a ter existência pacífica e contemporânea…
Venho apenas aqui lembrar que Luís Cristóvão (que de si próprio dizia ter mau feitio, e tinha…) não deve ser confundido com Cristóvão de Aguiar, autor de uma obra das mais vastas, das mais originais e das mais sérias da literatura portuguesa. Falar deste autor é falar de uma arte literária, de uma exigência estética, de um estilo próprio e de um discurso que mergulha fundo no húmus da oralidade. Não só porque deu dignidade literária ao léxico micaelense na sua trilogia romanesca Raiz Comovida: A Semente e a Seiva (1978), Vindima de Fogo (1979) e O Fruto e o Sonho (1981). Mas sobretudo porque é autor de outros romances incontornáveis: Ciclone de Setembro (1985) e O braço tatuado (1990), sobre a Guerra Colonial, e ainda Passageiro em Trânsito (1988 e 1994), Um grito em chamas (1995), para mim o seu melhor livro, e Marilha (2005).
No conto deu à estampa três obras de muito mérito: A descoberta da cidade e outras histórias (1992), Trasfega (2003) e Cães letrados (2008). E, numa reinvenção constante de uma contínua e continuada necessidade de expressão literária, este micaelense do Pico da Pedra dá-nos magistrais testemunhos do vivido e do sentido nos seus belíssimos diários: Relação de Bordo I (1964-1988), Relação de Bordo II (1989-1992), Nova Relação de Bordo, A tabuada do Tempo e Catarse, respetivamente editados em 1991, 2000, 2004 e 2007 e 2011.
Menos fulgurante e expressiva é a sua poética: Mãos vazias (1965), O pão e a palavra (1977), Sonetos de amor ilhéu (1992) e Amor Ilhéu (2015). Aliás ele nunca se considerou poeta, mas prosador.
Os livros deste escritor assentam em duas grandes linhas de força: a dimensão literária e a dimensão humana. E toda a sua obra é atravessada por três grandes eixos temáticos: memória insular, guerra colonial e emigração, através dos quais é questionado o problema do destino do homem e do sentido da vida.
Termino com esta certeza: o escritor Cristóvão de Aguiar só morrerá no dia em que deixarmos de o ler. Até lá está vivo e bem vivo!