ao meu irmão José Elmiro Dores, a quem esta
história, acontecida há precisamente 70 anos e aqui
ficcionada, sempre impressionou.
Edna
ou a proscrita
Corria o mês de março do ano de 1950 e, naquela vila à beira-mar, Edna era ostensiva e bela, meiga e esquiva. Casada com Tarquínio, alfaiate de profissão e visivelmente bem mais velho do que ela, era mãe de duas filhas menores, Antónia e Inácia. Tinha olhos verdes, cabelo castanho-claro ondeado, sobrancelhas arqueadas, sorriso aberto, dentes alvos, duas covinhas irregulares em cada lado da boca, lábios carnudos… Todos lhe reconheciam a distinção no porte, e os homens apreciavam o saracotear das ancas quando caminhava.
Educada numa família de funda tradição católica e temente a Deus, ela nunca faltava à missa de domingo e assistia aos terços, às novenas e aos lausperenes, ajudava a encher de flores as capelas da Matriz, jejuava pela Páscoa… Sem ser beata, despertava em si grande fervor as expressões de dor e agonia das imagens do Cristo Crucificado, e ficava a olhar, com enlevo, as imagens de santos que cheiravam a cedro…
-Como está, sr. padre?
-Estou bem, Edna. Obrigado.
Recém-chegado à vila, o padre Parménio, natural de uma outra ilha, era alto, de ombros largos e bem parecido, tinha um ar atrevido e um jeito muito peculiar de ajeitar os óculos. A batina preta dava-lhe um ar enigmático, acentuando-lhe o corpo esguio e elegante. Esforçava-se por agradar aos paroquianos, uma vez que estes se haviam afeiçoado durante 20 anos ao velho padre Xavier, ainda vivo, mas que, por limite de idade, deixara de exercer o sacerdócio. Nem todos na vila aceitaram de bom grado o novo padre. Os homens desconfiavam das suas maneiras resolutas, as mulheres censuravam as suas “modernices”, as beatas ficavam embevecidas com as suas homilias…
Edna foi notando que, sempre que surgia a oportunidade, o padre Parménio, de quem era devota e confessada, se insinuava junto dela, pedindo-lhe invariavelmente conselhos com falinhas mansas e, de quando em vez, olhares sedutores… Ela bem que tentava desviar-lhe as atenções, evitar as cumplicidades, barrar as aproximações… Um dia, estando ela a colocar flores na sacristia, o padre, com as fontes a latejar, envolveu-a por trás num abraço arrebatado… Edna gritou e, arquejando, enfrentou o padre que, lúbrico, não tirava os olhos do decote da sua camisa entreaberta…
Passaram-se algumas semanas de algum constrangimento de parte a parte. Mas, a pouco e pouco, Edna, sentindo-se desejada, foi cedendo às investidas do sacerdote e nela foi crescendo uma secreta paixão por ele. E o imprevisto mas não imprevisível aconteceu: tornaram-se amantes, ela com um enfatuamento delirante; ele com uma indescritível sensação de bem-estar, consciente de que “a carne é fraca”…
E, sempre que a oportunidade se propiciava, Edna, fugindo a olhares da vizinhança indiscreta e a contas com o desejo enlanguescido, caminhava apressadamente para o Passal para se encontrar com o eclesiástico.
-Amas-me?
– Sim, mas era melhor que não… – respondeu o padre Parménio, enternecido, afagando o rosto da paroquiana, depois tomando-lhe lentamente as mãos num gesto tão secretamente explícito… Olharam-se com volúpia no silêncio do quarto a que as persianas corridas emprestavam aconchego e obscuridade. E, de olhos fechados e lábios entreabertos, Edna, submissa e abandonada, entregava-se ao padre: os corpos que se enroscam, as mãos que viajam na ternura transbordante das coxas, o joelho que progride entre as pernas, as bocas sugando a sofreguidão dos sentidos… Depois, em inabalável comunhão, tombavam injetados de paixão e era no sussurro da cama que o amor acontecia…
Durante um ano Edna viveu praticamente para a doce espera daquele amor secreto e proibido e para o picante daquela relação deliciosa e clandestina que lhe enchia a vida de alegria e expectativa…
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Mas, de súbito, as coisas mudaram. O padre Parménio andava cada vez mais nervoso e arreliado. Chegara-lhe às mãos uma carta anónima dando conta das visitas de Edna ao Passal, e com veladas ameaças… Refletira muito e profundamente. De facto, aquela relação com Edna era uma infração canónica, um pecado de alma. Tinha que mudar de vida, entregar-se por inteiro ao exercício da função eclesiástica. O celibato obrigava-o à continência e à sobriedade. Por isso havia que fugir aos 3 inimigos da alma: Mundo, Diabo e Carne…
Naquele sábado, Edna chegava alegremente ao Passal sentindo que a porta rangia nos gonzos de forma mais estridente… Ao entrar estranhou o ar macambúzio do padre que, sem tirar os olhos do seu Breviário, disparou de forma abrupta:
– A partir de hoje não te quero ver mais.
– A partir de hoje não te quero ver mais.
– O quê?
– O meio é pequeno e anda por aí muito falatório… Vamos acabar de vez com estes encontros, ouviste?
Edna não respondeu e, sustendo os cabelos, atirou-se de bruços para a cama, rompendo num choro convulsivo.
– Sai, e não voltes mais aqui, por amor de Deus! – ordenou Parménio, com ar constrangido.
Edna enxugou as lágrimas num lenço que retirou da malinha de mão e, fitando com mágoa o seu amante adorado, abandonou o Passal tomando o caminho de casa. Com desalento e profunda tristeza, levava consigo a estranha sensação de que toda a gente a olhava de soslaio… Sentia-se escorraçada e desgraçada, seduzida e abandonada… O padre servira-se dela e agora deitava-a fora como um trapo inútil…
A partir desse dia nada seria como dantes na sua vida. Começou por desleixar-se consigo própria, descurando a educação das filhas, afastando-se das amigas, desinteressando-se do mundo… O marido não escondia a sua preocupação com o estado da mulher e tentava ajudá-la, mas só agravava ainda mais a situação: quando ele a cingia contra si, ela logo se desenlaçava e afastava-se praguejando impropérios.
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Uma semana depois, para dar cabo de alguns roedores que infestavam o quintal naquela altura do ano, Edna pediu ao marido que fosse à venda do Arlindo comprar um raticida qualquer.
Enquanto esperava, ela sentou-se ao piano, retirou a tira de flanela sobre as teclas e atacou algumas notas da Serenata, de Schubert, assumindo uma postura séria e sentida, semicerrando os olhos e projetando a cabeça para trás, extasiada… Nos seus olhos verdes relampejava uma funda angústia…
Lá fora, a vila entardecia cinzenta de neblina…
Lá fora, a vila entardecia cinzenta de neblina…
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Cerrando as pálpebras atormentadas, roendo a unha do polegar direito, Edna entrega-se ao desespero das lágrimas. A raiva, o desespero e a dor estão estampados nos seus olhos fixos numa abstração. O coração bate-lhe descompassado e a respiração torna-se-lhe, pouco a pouco, ofegante. Os lábios agitam-se na convulsão de saliva e no arfar dos seios. As palavras estrangulam-se-lhe na garganta:
-Porcaria de vida!…
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Na folha de papel que Edna amarrotara estava escrito: “Para quem me deu tanto amor e agora me despreza. Na minha casa só vejo a sua imagem”.
A certidão de óbito viria a confirmar: “Suicídio por envenenamento de arsénio”. Conta-se que, enquanto praticava as exéquias funerárias, o padre Parménio esteve sempre trémulo e lívido…
Era o tempo das azáleas e a suicidada tinha 31 anos de idade.
P.S. Misteriosos e insondáveis são os desígnios de alguns sacerdotes… O padre Parménio foi colocado numa outra ilha e nela tomou-se de amores por uma bela e indefesa paroquiana… Ali desenvolveu o seu múnus de forma meritória, pois que ainda hoje existe uma rua com o seu nome…