Somos um povo que aprendeu a ser através do mar.
Enquanto os portugueses não se aventuraram no mar, Portugal era apenas um pequeno território encostado ao Atlântico, mas entalado na península. Foi o mar que abriu o português ao mundo, que o fez encontrar outros povos e transformou a língua portuguesa numa das mais faladas do planeta. Portugal marcou presença na América, em África e até na Ásia. Em muitos locais deixou marcas, património construído e sobretudo comunidades culturais.
A insularidade é hoje parte integrante deste ser português. E os açorianos são a prova provada e comprovada dessa história das descobertas e do povoamento, são a expressão de um povo que se aventura e ultrapassa fronteiras, que não vê no mar um limite, mas um espaço de liberdade. Aliás, sempre considerei o mar como uma libertação e nunca como uma prisão. Neste sentido, podemos considerá-lo como um traço de união e de aproximação, porque tem ajudado a construir a insularidade e a açorianidade.
Com efeito, o mar, a que a história, a arte, e a literatura açorianas tão intimamente se encontram ligadas, transformou a dispersão das ilhas em unidade arquipelágica. Do ponto de vista simbólico, o mar representa o limite da própria realidade insular, o horizonte que se avista e que desafia o ilhéu a sair da ilha, ficando nela.
Ao contrário da terra, ninguém tem posse direta sobre o mar, apesar das diretivas comunitárias que definem as zonas económicas exclusivas. O mar é de todos. E é hoje, para além de fonte de rendimento, de diversão e prazer, pretexto para estudos científicos (sobretudo nas áreas da Biologia e da Oceanografia) a par de constituir lugar (inspirador) de sonho, de fantasia, de poesia… No imaginário popular há toda uma fraseologia que tem vindo a passar de geração em geração e que eu tenho vindo a recolher em várias ilhas. Deixo-vos alguns exemplos:
Ala bote! (expressão dita por emigrantes açorianos nos E.U.A., significando vamos embora; do inglês “all aboard”, todos a bordo, num contexto marítimo, mas também ferroviário).
Apanhar pela proa (ser contrariado).
Aqui não é o barco do calhau (aqui não mandam todos).
Baleias no canal, terás temporal (quando as baleias se aproximam excessivamente da costa é sinal de mau tempo).
Barco parado não ganha frete.
Cangar (ligar). Os botes vão cangados (dizia-se quando, na caça à baleia, a “gasolina” rebocava dois botes baleeiros ao mesmo tempo, estando estes amarrados um ao outro).
De meio canal p´ra terra (de meia-idade em diante).
Ela é uma mulher de convés alto (de seios alevantados); o contrário de “convés corrido” (mulher com seios muito pequenos).
Ele é só bifes de vitela e arrotos de chicharro (gabarolas).
Encosta o cais à lancha! (forma irónica de se falar da atracagem das lanchas da ilha do Pico).
Encostar o barco à parede (encostar o barco ao costado de um navio).
Está um mar de senhoras (mar manso).
Está um temporal desfeito.
Estar a fazer biscoitos para a viagem… (prestes a morrer. Alusão ao antigo uso de cada qual cozer o biscoito destinado a alimento durante as longas viagens. Fazer biscoito e fazer testamento eram dois atos que não esqueciam aos antigos, antes de empreenderem as demoradas e perigosas viagens marítimas).
Estar entre o cais e a lancha (estar em apuros).
Forte abrótea! (grande toleirão)
Mar de meia broa (maresia entre a costa e os ilhéus da vila da Madalena, na ilha do Pico).
Milhas corridas (idade avançada).
Mulheres no mar, cornos em terra… (diz-se muito nos Açores e, curiosamente, consta no “Auto de Mofina Mendes, de Gil Vicente, peça estreada em 1534…).
Não se apanha chicharro com lua cheia. (chicharro é o mesmo que carapau no continente português).
No cais é que se espera a lancha.
O mar está como mel / azeite – (o mar está manso)
O mar está rofe (o mar está bravo, do inglês “rough”).
O mar está como uma caldeira (mar chão).
O mar está a coriscar (embravecer).
O mar está de travessa (vaga contra o vento).
O mar não está p´ra lapas (o mar está encrespado).
Olho na lapa, olho na vaga (ter cuidado).
O sol está a meter a borda (modo de lembrar que são horas de deixar o trabalho).
Não faças ondas! ou Não faças abismos! (não compliques).
Perca-se a embarcação, mas conheça-se a baixa.
Rema, alma do diacho! (incentivo que o oficial do bote baleeiro dava aos remadores).
Rema, ventas de penico! (o mesmo significado do anterior).
Se ouvires roncar o mar, deixa os outros embarcar.
Se queres ganhar ou perder um amigo, viaja com ele.
Ter dinheiro a barlavento (dinheiro que se arranja por vias ilícitas).
Uma baleia de cem barris (mulher muito gorda).
Vais ver com quantos paus se faz uma canoa (ameaça).
Vento carpinteiro (vento sueste, que, na baía de Angra do Heroísmo, ilha Terceira, causava grande estorvo à navegação, destroçando os cavernames dos navios por fazê-los bater contra a costa).
Vento mama-vacas (vento leste).
Vento leste não traz nada que preste.
Como negar a existência de uma criatividade popular açoriana?