“O ódio racial ofende a ética, ofende a estética e ofende o simples bom senso”, assim escreve Eugénio Lisboa em artigo publicado no último “JL” e intitulado “A loucura fundamentalista”. Este brilhante ensaísta refere-se à promoção indiscriminada e à pouco democrática destruição de estátuas comemorativas de determinadas personagens de vulto da história universal, a pretexto do horrível assassinato de um negro americano por um polícia violento e racista.
É absolutamente natural e até saudável que tenham aparecido, por todo o lado, movimentos de protesto contra o que se passou nos Estados Unidos e que se poderia ter passado noutros países.
A estátua de Winston Churchil, para dar um só exemplo, foi vandalizada e aumentam as pressões de grupos radicais no sentido de ser apeada. E isto porque este político britânico era apologista da supremacia branca. Mas seja dito de passagem que, na época, mais de 90% da população branca do globo pensava exactamente o mesmo, ainda que o não confessasse.
Ora, apear a estátua de Churchil – a quem a humanidade tanto deve – só porque ele acarinhou ideias que, no seu tempo, eram as que prevaleciam, é no mínimo monstruoso. Como seria igualmente monstruoso “apagar” dos manuais o século de Péricles e o fulgor de toda a Grécia Antiga, só porque os gregos tinham escravos e tanto estes como as mulheres não tinham direito de voto. Lá se ia pela borda fora Platão, Aristóteles, Pitágoras, Arquimedes…
Convirá não esquecer que as exigências éticas dos séculos XX e XXI não estavam em vigor nos séculos passados. Platão teve 13 escravos mas legou-nos portentosos diálogos filosóficos. E deixou-nos inequívocas declarações de misoginia. Exemplo: “A natureza da mulher é inferior à do homem, na sua capacidade para a virtude”. E Aristóteles não lhe fica atrás quando se trata de denegrir a mulher: “A mulher é um macho imperfeito”. Vamos, por isso, abolir Platão e Aristóteles a fim de acalmar as mais assanhadas feministas? E que dizer de Nietzsche que escreveu esta coisa cruel: “A mulher foi o segundo erro de Deus”. E de Hegel: “A mulher pode ser educada, mas a sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e a algumas das artes”. Vamos, por estas ideias, reescrever a História da Filosofia?
Mas não fiquemos por aqui. Que dizer de Pitágoras que assim deixou escrito: “Existe um princípio bom que gerou a ordem, a luz e o homem; há um princípio mau que gerou o caos, as trevas e a mulher”. Vamos por isso abolir a Matemática?
E temos ainda estas “pérolas” da autoria de grandes sábios e pensadores. Confúcio: “A mulher é o que há de mais corrupto e corruptivo no mundo”. Catão: “É preciso trazer a mulher de rédea curta”. Tomás de Aquino: “A mulher é um ser acidental e falhado. O seu destino é viver sob a tutela do homem”. Santo Agostinho: “As mulheres não deviam ser educadas ou ensinadas de modo nenhum. Deveriam, na verdade, ser segregadas, já que são a causa de horrendas e involuntárias erecções em santos homens”. Lutero: “Não há maior defeito numa mulher do que desejar ser inteligente”. Petrarca: “Inimiga da paz, fonte de inquietação, causa de brigas que destroem toda a tranquilidade, a mulher é o próprio diabo”. Vamos riscar toda esta gente da História do Pensamento?
São muitos os autores misóginos: Voltaire, Flaubert, Schopenhauer, Freud, Strindberg, Dostoiewsky, Wilde, Sommerset Maughan, Hemingway, Groucho Marx e tantos outros. Vamos bani-los e empobrecer monstruosamente toda a nossa cultura? Vamos deixar de ler Fernando Pessoa só porque ele escreveu um poema a Salazar? Não seria melhor reconhecer, de forma humilde e produtiva, que os seres humanos não são feitos de uma só peça, havendo, até nos mais excepcionais, facetas menos estimáveis?
Tudo isto deve ser visto e avaliado com a devida perspectiva temporal. E com esta certeza: não há heróis perfeitos.