“(…) sem exagero me parece que metade da Graciosa era povoada de frades e que a outra metade lhe devia pertencer por ternos laços.”
Chateaubriand, Memóires d´Outre-Tombe (1849)
Como investigador e, sobretudo, na minha condição de graciosense, é para mim uma honra e um privilégio associar-me ao lançamento desta obra, Igrejas e Ermidas da Graciosa, do padre jesuíta Dr. Vital Cordeiro Dias Pereira, nascido nesta vila de Santa Cruz da Graciosa no ano de 1921, e falecido em Lisboa em 2008.
Estamos perante uma edição da Câmara Municipal de Santa Cruz da Graciosa, neste ano da graça de 2018, e que teve uma primeira edição em 1986, então com a chancela da Direção Regional dos Assuntos Culturais / Secretaria Regional de Educação e Cultura (Maia), aquando da comemoração do 500º aniversário de elevação a vila de Santa Cruz da Graciosa. O livro apresenta-se agora graficamente melhorado por via da digitalização e recuperação fotográfica do original, a que meteram mãos, com resultados muito meritórios, o padre Norberto da Cunha Pacheco e o fotógrafo José Nascimento Fernandes Ávila.
Igrejas e Ermidas da Graciosa fica também valorizado com a anexação de um Aditamento à edição de 1986, do mesmo autor, seguindo-se importante Índice Analítico, Anexo e fotos atuais das igrejas e ermidas da Graciosa, bem como das que se encontram destruídas e em ruínas, terminando com Notas Documentais.
Escrita durante 9 anos, esta obra está dividida em cinco partes: I Parte, A Matriz de Santa Cruz da Graciosa; II Parte, Igrejas e Ermidas de Santa Cruz; III Parte, Igrejas e Ermidas da Praia; IV parte, Igrejas e Ermidas do Guadalupe; V Parte, Igrejas e Ermidas da Luz.
O capítulo mais aprofundado, e que está na génese do livro, incide na nossa elegante e majestosa igreja Matriz, de boa cantaria basáltica e que após ter sido modificada na sua traça e nas suas proporções ainda hoje apresenta vestígios da época manuelina. São 160 páginas destinadas a este templo, com descrições pormenorizadas e minuciosas sobre o que dele escreveram diversos autores, com destaque para os apreciadíssimos Painéis Quinhentistas, possivelmente da autoria de Cristóvão de Figueiredo, valiosas peças com projeção nacional e internacional.
Hipólito Raposo (1855-1953), advogado, escritor, historiador e político, foi o primeiro investigador a chamar a atenção destas pinturas, tendo escrito sobre as mesmas importante estudo. Recorde-se que este autor, anti-salazarista, viveu durante alguns anos na Graciosa, como exilado político.
O autor estudou, investigou e pesquisou documentos e livros no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e nas Bibliotecas Públicas de Ponta Delgada e Angra do Heroísmo, colhendo abundante informação junto de autores como Gaspar Fructuoso, António Cordeiro, Agostinho de Montalverne, Diogo das Chagas, Manuel Luís Maldonado, Jerónimo Emiliano de Andrade, Manuel Monteiro Velho Arruda, António da Cunha e Silveira, António da Rocha Ferraz, Júlio da Rosa, Artur Teodoro de Matos, entre outros. E recorreu a outras fontes mais específicas sobre a ilha Graciosa: Livro de Assentos de Baptizados, Casamentos, Óbitos das 4 freguesias da Graciosa; Livro das Visitações de Santa Cruz; Testamento de Mor Gonçalves; Genealogia de Frei André do Coração de Maria; Relação de 1738; Livro do Tombo de Guadalupe; Livro das Visitas Pastorais a Santa Cruz e Praia; Livro de Linhagens e Genealogias, e o jornal (praiense) A ilha Graciosa (publicado entre 1894 e 1907), lançando olhares às obras de autores que mais atenção e estudo dedicaram à ilha Graciosa: Félix José da Costa, autor de Memória, Estatística e Histórica da Ilha Graciosa (Angra, 1845); António Borges do Canto Moniz, A Ilha Graciosa (Angra, 1883); Hipólito Raposo, Descobrindo Ilhas Descobertas (Porto, 1942); António Brum da Silveira, A Ilha Graciosa (Lisboa, 1968).
O resultado é um completíssimo e minucioso levantamento, com o devido enquadramento histórico, sobre o património religioso da Graciosa, de que hoje restam 10 igrejas e 16 ermidas, de pé, o que não deixa de ser significativo dada a dimensão da ilha Graciosa.
Ao longo das 560 páginas desta obra, o “padre Vital”, como era tratado, cita e cruza fontes, compara autores, relaciona teses, narra factos ocorridos, questiona situações, detecta contradições e discrepâncias, esclarece acontecimentos, precisa datas, corrige afirmações, decifra dados.
Escreveu o sociólogo norte-americano Arnold Toynbee: “É muito fácil construir igrejas, o que é difícil e meter Deus lá dentro”.
O padre Vital conseguiu, de facto, meter Deus em todas as igrejas por onde paroquiou. Sempre vi nele um homem de cultura, generoso e humanista, investigador incansável, orador sacro de primeiríssima água e conversador fascinante, ele que trazia as ideias arejadas resultantes do Concílio Vaticano II (“a aurora dos novos tempos”, como então se dizia) e de cujo aggiornamento era defensor.
E tudo isto porque no Seminário de Angra, que frequentou antes de rumar a Espanha, este graciosense manteve contacto com um corpo docente de luxo e o melhor escol intelectual da altura: os doutores José Enes, Artur Cunha de Oliveira, Francisco Carmo, Tomás Edmundo Machado, Francisco Caetano, Coelho de Sousa, Artur Goulart, entre outros, que, dentro e fora do Seminário, contribuíram decisivamente para uma mudança de mentalidades, e funcionaram como motor de reformas então em curso. Dialogando com a contemporaneidade, o Seminário de Angra trouxe renovação cultural e espiritual, numa altura em que não havia outra instituição de ensino superior nos Açores.
Ainda sobre o Seminário de Angra, permitam-me um breve testemunho pessoal, já que durante a minha adolescência terceirense, eu assisti a uma dinâmica cultural que irradiava daquela instituição, iniciada nos anos 50 e prolongada até princípio dos anos 70 do século XX. Recordo aqui as decisivas cinco Semanas de Estudo, promovidas pelo Instituto Açoriano de Cultura, a importância dos suplementos literários Pensamento e Glacial, do jornal “A União”, as edições Cadernos de Pensamento, a grande qualidade de espetáculos musicais e teatrais apresentados no Seminário, sobretudo na festa de S. Tomás de Aquino.
Ainda sou do tempo em que os angrenses designavam os seminaristas de “melros pretos” e “estorninhos”, porque os alunos saíam em grupo à rua, ao sábado, de batinas pretas, romeiras e chapéus pretos. Como os bandos de estorninhos eram presságio de chuva, era frequente os seminaristas ouvirem os sarcasmos dos transeuntes com quem se cruzavam: “Amanhã vai chover”…
Foi esta a génese e foi este o fermento cultural do padre Vital que, como todos sabemos, teve dois amores: o amor à Igreja, e o amor ao património artístico e histórico.
Sempre defendi o princípio de que não há uma cultura nacional se não houver uma verdadeira cultura regional. O padre Vital foi, à sua maneira, um historiador local, e há grandeza em ser historiador local. Os autores que acima citei, entre tantos outros que lhes sucederam, foram autores locais e a verdade é que, hoje, não podemos passar sem eles.
Por conseguinte, é a partir da História local que se chega à História universal. De resto, e num outro contexto, já no-lo havia lembrado Miguel Torga: “O local é o universal sem paredes; quanto mais local, mais universal”. Nas minhas aulas, quando me refiro à globalização e massificação, chamo sempre a atenção dos meus alunos para a conhecida máxima de Tolstói: “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”.
Também costumo dizer, a quem me quiser ouvir, que a minha portugalidade renasce e amplia-se com a minha açorianidade. Ou seja, eu antes de ser cidadão do mundo, sou europeu, mas antes de ser europeu, sou português dos Açores e, como açoriano, sou graciosense e, sendo graciosense, faço sempre questão de dizer que sou santacruzense, defendendo, com unhas e dentes, a minha “graciosensidade”, conceito por mim criado e que decalquei da “açorianidade” de Nemésio, que por sua vez havia decalcado de “hispanidad”, de Miguel de Unamuno. E ao ser tudo isto, aspiro a ser universal a partir das ilhas.
Por conseguinte, o padre Vital foi um historiador local. E não tenhamos dúvidas: a estrutura moral dos açorianos deve muito ao clero. Basta lembrar que, até meados do século XIX, toda a cultura, dos Açores e nos Açores, estava praticamente nas mãos dos padres. Porque bem vistas as coisas, quem trouxe a cultura para estas ilhas não foram os marinheiros do povoamento (que não sabiam ler), nem foram os nobres (que eram iletrados). Em meados do século XV a cultura foi trazida para os Açores pelo clero. Primeiro com os frades franciscanos e carmelitas e, mais tarde, com os jesuítas e capuchinos que, para além da instrução e da religião, nos deixaram outras marcas. Por exemplo, com eles aprendemos os segredos de como produzir o bom vinho, as boas angelicas e as boas aguardentes – o que é também uma outra forma de cultura. Tal como ficamos a dever às freiras a nossa melhor doçaria conventual.
Depois, a partir de finais do século XIX, e durante todo o século XX, tivemos o padre que, a par do professor primário, nos deixaram contributos decisivos para a alfabetização e para o desenvolvimento cultural das nossas gentes. Padres e professores estão na origem da fundação e criação de jornais, filarmónicas, grupos corais, ranchos folclóricos, grupos de teatro, tunas, agremiações desportivas e até atividades científicas. Lembro, a propósito, o padre faialense Manuel José de Ávila (1851-1923), que foi reputadíssimo meteorologista.
A religião católica impôs aos açorianos o pecado, a vergonha, a culpa, e ensinou-nos a amar o próximo, a ajudar os outros, a ser complacentes, compassivos e misericordiosos. Deste modo, os açorianos foram educados na honra, no crédito, no respeito pelas autoridades. Aprenderam a ser francos, laboriosos, hospitaleiros, fortes e resolutos. E isto deixou inevitavelmente marcas em nós, nestas ilhas nascidos. Proibiram-nos de ser egoístas, logo o outro tem peso, não nos é indiferente. Até porque vivemos em meios pequenos, o que permite um maior conhecimento e uma ligação mais próxima entre as populações.
Concluindo: é de grande relevância o papel do clero no desenvolvimento cultural dos açorianos.
Tal como vós, também eu fui educado numa família de funda tradição católica, em que a espiritualidade se misturava com algumas formas de expressão artística.
Se me permitem, e para justificar, eu avançaria com alguns exemplos familiares: a minha avó materna, Rosalina dos Prazeres Ramalho Ávila, foi organista de excelência na freguesia da Luz, tendo tocado, com apenas 8 anos de idade, a sua primeira missa cantada. O marido dela, José Correia de Ávila (conhecido por Manuel Sacristão) foi um barítono estimado. Meu tio Napoleão de Castro Bettencourt de Avila liderou uma comissão, constituída por emigrantes graciosenses, que conseguiu angariar os fundos necessários para adquirir, em Braga, a imagem de São José, imagem de um realismo impressionante e que pode ser apreciada num dos altares da igreja da Luz. Minha mãe, Judite, foi, durante largos anos, coralista e, mais tarde, organista titular da Matriz de Santa Cruz. Eu e os meus irmãos passámos horas e horas no coro alto daquela igreja, em ensaios e missas, a dar o fole (ao pé) para que o som do órgão se fizesse ouvir.
Do lado paterno, meu avô José Maria das Dores, retratista estimável, é autor da pintura existente no tecto do guarda-vento da Matriz de Santa Cruz, e foi ele que pintou os frescos que ainda hoje podem ser vistos no interior do império das Fontes.
Eu próprio, em criança, vestido de túnica vermelha e de sobrepeliz de renda branca, ajudei muitas vezes a missa de domingo do padre Simões, manuseando, com grande familiaridade, as galhetas, os cálices, a patena, as sagradas hóstias, o pão e o vinho… Cheguei a ter, por essa altura, um assomo de vocação sacerdotal. Na sala de estar da minha casa na Rua Marquês de Pombal, eu dizia missas em latim, compenetradíssimo do meu papel, em altar improvisado e perante assembleias de devotos e curiosos. Vestido a rigor (as casulas eram feitas pelas mãos de ternura da minha mãe), eu encenava na perfeição, os actos litúrgicos: dava a comunhão (as hóstias eram substituídas por pastilhas de mentol), confessava crianças e adultos, fazia procissões e coroações pelas ruas de Santa Cruz, perante o espanto de todos e a desconfiança do padre Genuíno… Dei início ao agora extinto Bodo da Avenida e que se manteve durante alguns anos. Mas, para grande desgosto da minha mãe, não cheguei a ingressar no Seminário, porque, já a viver na ilha Terceira, deixei-me enfeitiçar pelos lindos olhos verdes de uma menina da Serreta…
Mas basta de lembranças pessoais e reatemos o fio à meada. Foi, com efeito, muito relevante o papel do clero no desenvolvimento cultural dos açorianos.
Mas pergunto: o que se tem feito pela salvaguarda de todo o recheio das igrejas açorianas? O espólio artístico nelas existentes (nomeadamente a imaginária) estará todo inventariado e devidamente acautelado? Em tempos de pirataria houve muito espólio roubado, queimado e arruinado para sempre. É óbvio que, para isso, também contribuíram causas naturais para a destruição dos nossos templos ao longo de mais de 500 anos: convulsões vulcânicas, sismos, enchentes, tempestades marítimas, os altos índices de humidade, etc. Eram então vulgares os incêndios nas igrejas e, à incúria do homem, juntou-se sempre a constante falta de verbas… Mas convirá não esquecer que, nos tempos que correm, continua a haver por aí muitas outras formas de pirataria… Por isso, há que estar vigilante e atento.
Aqui fica, para memória futura, Igrejas e Ermidas da Graciosa, referência obrigatória para o conhecimento do nosso património religioso. E, com este livro, muito fica a ganhar a nossa ilha, de muitos ainda esquecida e desconhecida, mas, ainda e sempre, graciosamente bela.