(em duas cenas)
Em rigor aquilo não era um restaurante, mas uma “casa de pasto”, situada na Travessa do Poiso Novo, entre a Praça da República e a Avenida, na cidade da Horta. O seu proprietário era o João do Talho, ex-talhante e figura castiça e popular, que preparava e servia o apreciadíssimo “bife à João do Talho”, cujo segredo, sabe-se hoje, residia na maneira de preparar a carne, que ficava de vinha-d´alhos de um dia para o outro para atenrar.
João do Talho era dado a rudes espontaneidades com toda a gente, sobretudo com caixeiros-viajantes, com os quais alimentava uma relação de atrito permanente. Como estou a escrever, neste momento, uma peça de teatro baseada neste homem, tomo a liberdade de partilhar com o leitor dois dos muitos episódios ocorridos na referida “casa de pasto” e que hoje fazem parte do imaginário coletivo faialense.
CAIXEIRO VIAJANTE: O senhor é que é o João do Talho?
JOÃO DO TALHO (limpando as mãos no avental): Sim senhor, para o servir.
CAIXEIRO VIAJANTE: Onde é que me posso sentar?
JOÃO DO TALHO: Numa cadeira.
(Acabrunhado, o cliente puxa de uma cadeira e senta-se à mesa)
CAIXEIRO VIAJANTE: Venho jantar aqui ao seu famoso restaurante, mas sabe, não posso comer nada que seja pesado. Tive uma viagem má no “Carvalho Araújo” e só não vomitei as tripas porque não calhou. O que é que me pode arranjar?
JOÃO DO TALHO: Bifes! É a minha especialidade!
CAIXEIRO VIAJANTE: Oh não! Bifes não! Nem vê-los! O que é que tem mais?
JOÃO DO TALHO: Lombo de porco com feijão branco.
CAIXEIRO VIAJANTE: Oh não! Não há mais nada?
JOÃO DO TALHO: Há.
CAIXEIRO VIAJANTE: Então o quê? Peixe cozido?
JOÃO DO TALHO: Mão de vaca com feijão branco.
CAIXEIRO VIAJANTE: O quê? (a ficar desesperado) Mão de vaca quando eu estou a pedir-lhe peixe? Arranje-me lá uma postinha de peixe cozido, faz favor. Mas não ponha nem pingo de azeite, nem vinagre, nem batatas, nem azeitonas, nem nada, está a perceber?
JOÃO DO TALHO: Estou a perceber perfeitamente. Importa-se de vir aqui?
(O cliente levanta-se e vai até à porta que dá para o exterior do restaurante)
JOÃO DO TALHO: Sabe o que é aquela casa grande ali em cima?
CAIXEIRO VIAJANTE: Não.
JOÃO DO TALHO: É o Hospital. É lá que o vão tratar.
(João do Talho vira as costas ao caixeiro-viajante e regressa à cozinha).
CAIXEIRO VIAJANTE: Boa tarde, senhor João. Venho almoçar um bife dos seus…
JOÃO DO TALHO: Dos meus não, da vaca!
CAIXEIRO VIAJANTE: Pois, pois, da vaca, com muitas batatas fritas e um ovo a cavalo.
JOÃO DO TALHO: Cavalo não tenho.
CAIXEIRO VIAJANTE: Pois, pois, com um ovo, tudo bem!
(João dirige-se à cozinha. O caixeiro-viajante examina a toalha da mesa. Pausa.)
CAIXEIRO VIAJANTE: Ó senhor João, pode vir aqui faz favor?
JOÃO DO TALHO: O que é que se passa?
CAIXEIRO VIAJANTE: Há aqui umas nodoazitas de vinho tinto nesta toalha, está a ver? Para ficar tudo como deve ser, não se importava de mudar a toalha?
JOÃO DO TALHO: Diga-me uma coisa: o meu amigo quer comer o bife ou a toalha?
CAIXEIRO VIAJANTE: Bom, são estas nódoas…
JOÃO DO TALHO: Então fique com a toalha que eu fico com o bife!
(João pega no bife, vira as costas e dirige-se para a cozinha, ficando o caixeiro-viajante completamente atónito).
Era assim o João do Talho. Com caixeiros-viajantes, mas também com gente grada do Faial.