Brilhantes e purpurinas? Check! Cabeleira? Check! Pinturas Faciais? Check!
Em circunstâncias normais, assim seria, aumentava a ansiedade, estaríamos numa azafamava fervorosa, antevendo a chegada dos ímpares e alegres dias de Carnaval. Mais vivido por uns, menos entusiasmante para outros (com certeza em minoria), a época carnavalesca assume-se como um amplo cartaz da nossa ilha, um marco da nossa cultura, e rica parcela de uma economia, que por estes dias fazia os mais forretas abrirem cordões à bolsa, de modo a viver da forma mais divertida a quadra.
Porém, 2021 puxou o travão de mão e disse: ALTO E PÁRA O BAILE! Fomos atirados para uma realidade cruel, qual dança de espada trágica e enfadonha, que faz cair em pranto os foliões. Sem bailes, sem fantasias, sem bailinhos, sem desfiles, sem ensaios, sem o corrupio do entra e sai nas costureiras, sem ornamentação dos clubes e sociedades, sem o precioso e saudável convívio físico… Hoje sobra tempo para um ataque de nostalgia, sobra tempo para reavivar memórias que aqui e ali fazem certamente parte do intelecto de cada leitor, do mais velho ao mais novo, até porque não há idade para se viver em alta rotação e com emoção à flor da pele o Carnaval.
Fecho os olhos, e entra-me pelas narinas o cheiro a filhoses fritas, feitas no Domingo Gordo em casa do avô Mário, tão fofas, envoltas em canela e açúcar, que teimava em ficar colado nos cantos da boca. Lembro-me dos desfiles de fantasias no pavilhão escolar, sempre apinhado, de maneira que não havia margem de manobra para os mais aflitos da bexiga, pois regressar e ter o lugar vago poderia ser milagre. Quem se lembra da Simara? Uma artista brasileira, loira de voz grossa, e de corpo roliço. Acanhado, e pela mão de minha mãe, trajava disfarces primorosos, elaborados por ela, e ia para a bancada desfrutar de todo aquele espectáculo de cor e música.
Lembro-me de ir para os bailes o mais cedo possível, chegar lambido e agasalhado até aos olhos, para não constipar, e sair pingando, vermelho como um tomate. Ora brincava-se às escondidas por entre os casacos das senhoras, ora passava-se horas a queimar escudos na mesa de matraquilhos, ora jogava-se bilhar como gente grande, intercalando com maratonas de correria atrás dos grupos de mascarados. Tais mascarados, quando entravam nos salões, passavam a ser o centro das atenções para os pequenos traquinas, armados em Sherlock Holmes, em tentativas quase sempre frustradas de desvendar quem se escondia por de trás daquelas máscaras e roupas pouco fashion.
Infância linda, em que a canalha rejubilava com esguichadelas de pistola de água, guerreiros que pintavam o cabelo com spray de cor encarnada, e semeavam o terror quando se muniam com aquelas bombinhas engarrafadas malcheirosas, fazendo inveja a qualquer gás resultante de uma mistura de feijão com brócolos. Numa escala condizente com a faixa etária, agendavam-se tenebrosas batalhas de água na praça, onde as casas de banho públicas eram temporariamente remodeladas em autênticas fábricas de produção bélica, houvesse mais balões… O raspanete era certo, pois dificilmente alguém chegava imaculado a casa, afinal de contas o importante era imitar o que os mais velhos faziam na tarde de Entrudo.
Não perdendo o fio condutor, alusivo às brincadeiras com água, vem-me à memória farinha e sacos de plástico colados no piso irregular da praça, vem-me à memória carrinhas de caixa aberta carregadas com bidons, até a velhinha Dodge dos bombeiros em plena Praça Fontes Pereira de Melo auxiliando o reabastecimento dos combatentes. Vem-me à memória uma máquina de sulfatar, um fato de água em tons amarelados, e até um mergulho no Paul.
Guardo no portefólio cerebral um famoso jogo de futebol, coisa de alto nível, no velho pelado de Guadalupe, espécie de casados contra solteiros. Um árbitro tendencioso, jogadores meio zarolhos, uma carroça que servia de maca, um garrafão de vinho junto às redes do guardião, e vestígios de álcool à mistura. Nas mais profundas lembranças, guardo ainda a presença em matinés infantis, tradição actualmente apagada. E dessas matinés, um sarrabulho opondo um Batman a um Super Homem. Eu era o Batman…
A adolescência chega, pintada com outro perfume, mas sem perder o brilho. Quantos pés de dança foram arrastados para ávidos namoriscos? Cai a máscara da inocência e esquivam-se os primeiros beijos, às escondidas dão-se as primeiras cigarradas, e a pequenina garrafa verde de Frisumo de ananás, que por magia se transforma em sumo de cevada, de maneira que três ou quatro são suficientes para começar a ver palhaços a dobrar.
Nesta idade começa-se a levar a “coisa” mais a sério, pois semanas antes, famílias e grupos de amigos juntam-se e preparam com afinco as fantasias para os carismáticos bailes de máscaras. Todos querem estar a preceito, principalmente para aquela noite de sexta, dura etapa que faz ronda pelas colectividades e termina ao som de sambas e marchinhas na pista do Pub.
Emancipados, começa o rodopio das visitas de clube em clube, é estabelecido roteiro consoante a força de cada baile, as horas vão passando e as noites frias de fevereiro vão ficando mais quentes, arrastando-se num manto de alegria até o sol raiar, até soar o último acorde da viola.
Pérolas e lantejoulas, franjas e plumas, tecidos folhados e cores vibrantes, indumentária para o expoente máximo e bandeira desde gracioso Carnaval, as fantasias de grupo. Para os iniciantes, não há tempo para estranhar, e é caso de estudo quem não fique com o bichinho nas veias, o que se reverte no número de figurantes ano após ano. Mais do que uma coreografia trabalhada, um dom para a dança, ou guarda-roupa exuberante, impera a amizade e fortalece-se um grupo em que todos ambicionam a mesma coisa: diversão. Sempre de roda no ar, quer-se muita folia, pés ligeiros e dançantes, gargantas aptas e depósito cheio, seja nos ensaios, seja no desfile, ou mesmo em cada autocarro que avança a custo de salão em salão.
Depois de dias e horas dedicadas à celebração, a cabeça ainda não assentou o norte e anda à roda. No ouvido, fica o zumbido das músicas tornadas ícones do nosso Carnaval, que oiço nos bailes há trinta anos, mas sempre com o mesmo sabor, seja ela um «Bilu, bilu, bilu, Bilu-teteia», «Menina abóbora», «Ô lá lá, linda transmontana», «Cachaça não é água não», «O tempo de palhaço já passou», «Eu vi a Eva de mini saia», «Ontem já passou, Hoje é que é o dia, Amanhã ninguém o sabe, Por isso hoje é alegria», ou de um «bota acima, bota abaixo», tocado para lá das sete da matina e com os primeiros raios de sol a passar pelos cortinados.
A roda está cheia, a dança das palavras já vai longa, mas tanto ficou por relembrar. Porém, que nunca se me apague da memória as tradicionais modas de viola na Recreio dos Artistas e na Praia, os bailes de máscaras do Santa Cruz e à quinta-feira no meu Marítimo. Que nunca se me apague da memória a minha fixação pela agilidade do Nuno “Abrótea” com as baquetas, a voz inconfundível do Gasparinho, do pupilo César, ou do agora meu colega Valdemar. Conjuntos musicais como os Semibreve, os Sons da Esperança, os STJ, a Banda Europa, o Ritmo 2000, os Onda Jovem, os Cinco Estrelas, ou até os importados Arregaita. Que nunca se me apague da memória aquela fantasia extrovertida, produção da Rosa e do Cristóvão do Rivoli. Que não se desvaneça as modas de chocolate, as subidas ao palco para dar uns toques na bateria ou timbalão, beber, comer e bailar até à chegada do Zezinho para as fotos de grupo. Que perdure a recordação das matinés na Luz, os Bailinhos da Ribeirinha, os bailes ao domingo no Guadalupe, os fortes bailes de sexta na Vitória, das noites estendidas até de manhã no Graciosa e as suas fantasias de grupo. Que nunca se me apague da memória a originalidade de cada traje que vesti, cada jantarada entre amigos no Bajinha, cada volta aos clubes. Que o vício nunca morra.
Hoje não há baile, os salões perderam cor, perderam fôlego e movimento. Perderam a vibração ritmada provocada pelos tacões do calçado das senhoras nos sobrados de madeira. O papel picado não vai ficar colado ao chão, não há serpentinas, nem fitas entrelaçadas e balões no tecto. Não haverá as cestas com petiscos, para enganar a fome a meio da noite, não vão estar sobre o balcão as sandes de carne moída, os ovos cozidos com molhanga ou os torresmos. As meninas não vão receber o seu chocolate, não vão saborear filhoses de forno nem coscorões. As fantasias não se vão atrasar, ninguém ficará á espera que lhe seja cosido o último botão, ninguém vai descolar a sola do sapato de tanto bailar. As janelas não vão escorrer de humidade, provocado pelo calor humano, mas como eu, vão olhar para o passado e chorar de saudade.
Carnaval, a Graciosa precisa de ti! Eu preciso do Carnaval!