Sete de Setembro de 1969.
Tarde sombria e mar picado. É “Dia de São Vapor” e paira no ar um intenso cheiro a maresia. O cais está apinhado de gente, que embarca, desembarca e espera que alguma coisa aconteça… E há também muitas vacas que aguardam a sua vez para serem embarcadas no “Lima”, com destino a outros matadouros…
Menino e moço, vou de viagem pela primeira vez. Deixo a casa da minha infância e, pela mão de minha mãe, dirijo-me ao cais de partida. Desço, a medo, os degraus esverdeados da escaleira, e salto para bordo do “Espírito Santo”, barco de cabotagem, com dois mastros, casco e casa pintados de branco. No convés amontoam-se caixotes, malas, barris, sacas, lonas… Há cestos e cabazes cobertos com toalhas brancas que exalam o cheiro de frutas maduras: ameixas, uvas, peras e figos… Depois de terem carregado o porão com telhas, fecham o alçapão do mesmo e, acto contínuo, um piano é içado para bordo, o que desperta a curiosidade dos que estão no cais.
Gaivotas voam em terra e vejo o embate estrondoso das vagas contra as rochas… Sinto frio na cara e a humidade dos borrifos de água salgada na boca.
– Vamos ter vaga cavada… Vagas de respeito! – sentencia um velho lobo do mar.
O motor, com um estampido, arranca e o “Espírito Santo” estremece… Na ponte de comando, mestre Ezequiel, picaroto de rija têmpera e marinheiro experimentado, estuda os ritmos do mar, contando mentalmente as vagas grandes e pequenas, enquanto ordena ao marinheiro que está em cima do cais:
-Segura firme o cabo da popa!
Mestre Ezequiel decide-se: aproveitando um período de vagas pequenas, inicia as manobras. Grita para o contramestre e para o maquinista:
-Larga! Marcha à ré! Guina! P´ra vante!
Zarpamos, baloiçando à voga picada. Um cheiro a gasóleo começa a toldar-me o estômago…
O “Espírito Santo” apita três vezes e foge às ondas que avançam em colunas cerradas, umas atrás das outras. O barco rola, assustadoramente, de bombordo para estibordo, de estibordo para bombordo. Abre-se um abismo à proa e o “Espírito Santo” desce para logo subir.
Passamos pelo “Lima”, ao pé do qual o “Espírito Santo” é uma autêntica casca de noz… Lá está o navio atarracado e pesadão, adornado a bombordo. Olho a sombra do casco reflectida fantasmagoricamente no mar. Assusto-me com os jorros de águas espumosas que saem de vários bueiros do negro costado do navio…Aprecio o dorso da chaminé e reparo que aquele vapor é bem mais alto do que a torre sineira da igreja da vila onde nasci…
A minha ilha vai ficando para trás, cada vez mais longe, até se extinguir na distância…
A bordo, as acomodações são mais que rudimentares. Há uma sala comum, que alberga a maior parte dos passageiros, com bancos de madeira transversais e pegajosos… À popa, mais bancos corridos e apenas utilizados quando o mar está bom. À proa, uma cozinha improvisada, onde se pode comprar sandes, bolachas, pirolitos e cerveja…
Na câmara comum, janelinhas quadradas, fiada de um lado, fiada do outro, os passageiros, encolhidos e estremunhados, entregam-se à viagem. Alguns fingem-se despreocupados. Nanja minha mãe que me abraça e vai rezando baixinho… Viajamos recostados nos desconfortáveis bancos… Há um calor abafadiço, um bafo tépido, um cheiro a suor e a tintas que me dão voltas ao estômago… Olho, impaciente, pelas vigias e vejo os vagalhões espumosos que desabam sobre a embarcação. E sinto a pancada das ondas no costado e o ranger do cavername… A meu lado, um soldado vocifera pragas a cada solavanco do barco. À minha frente uma velhota, de xaile pela cabeça, vai gemendo um “ai Jesus” de quando em vez. Ao lado dela, uma rapariguinha rói nervosamente as unhas. Há uma mulher que come laranjas, outra que maldiz a sua sorte. Há um padre que se esforça para ler um jornal e, além, um funcionário público a contas com as agonias do enjoo…
(Vomitava-se para dentro de umas latinhas de alumínio em forma de ampulheta…).
O vento rodou para noroeste e um temporal desfeito abate-se sobre nós. As vagas rolam contra o costado do barco, galgam-lhe a proa, a borda… Uma das grandes eleva o “Espírito Santo” no ar e fá-lo depois afocinhar nas grandes covas de água cavadas pelo vento desabrido. O motor abranda a marcha, desembraia nas vagas maiores. Só vejo lençóis de espuma, poalha de espuma. Estamos entregues à experiência e perícia de mestre Ezequiel. O movimento surdo da hélice faz estremecer os vidros das janelas. Não retiro os olhos do mar. Lá estão as vagas a correr pela popa e tudo aquilo me parece aterrador e enervante!
Os tripulantes não têm mãos a medir a acudir este e àquele outro: contínua e continuadamente, vão despejando para o mar o conteúdo das latinhas de alumínio… Despejam, lavam na borda, voltam a trazer as malditas latinhas. Paira ali um cheiro azedo e nauseabundo… Estou lívido, mas não vomito…
Lá fora, a chuva tomba, grossa como cabos de amarras, e ouvimos as refregas do vento que assobia nos mastros e nas enxárcias…
Um tripulante vem informar-nos que há quatro camarotes disponíveis (cada camarote tinha dois beliches). Digo à minha mãe que quero ir para lá descansar. Tenho a cabeça tonta e o corpo em desequilíbrio com os tombos do barco… Não consigo adormecer. (Os beliches eram feitos de tábuas de forro cheirando a sujo e a vomitado…).
…O tempo é lesma a passar…
E continuamos, inseguros, enfrentando a fúria das ondas alterosas.
Ao fim de sete horas de tormenta, chegamos à baía de Angra em águas tranquilas. Durante a manobra de atracagem no Porto das Pipas, não consigo conter tanta emoção: debruço-me na borda e vomito prosaicamente…
– Lá vai engodo para o mar! – ironiza mestre Ezequiel.