Do meu tempo de menino e moço ficou-me a recordação do “Sai-Sempre”.
Ninguém alguma vez soube o verdadeiro nome daquele homem esguio e magro, de fato coçado e gravata enxovalhada, de andar ligeiro e cabelo luzidio de brilhantina…
Nos anos 60 do século passado lembro-me de o ver na Praça Velha, para onde se dirigia com uma mala que, por artes mágicas, se transformava numa mesa, em cima da qual ele espalhava, à laia de exposição, pentes, lâminas, baralhos de cartas, porta-chaves, corta-unhas, esferográficas, isqueiros, canivetes, pomadas e mezinhas para todas as doenças…
De seguida anunciava, com voz forte, aqueles produtos (duvidosos) utilizando o pregão de “sai sempre”. E assim ficou conhecido, em Angra do Heroísmo, aquela criatura misteriosa.
Um destes dias, isto é, meio século depois, chega-me às mãos a antologia Açores – PortoAlegre, contistas geminados (Edições Caravela, Leitura Século XXI, Turiscon Editora, PortoAlegre/RS Brasil, 2017), organizada por António Soares, Liduíno Borba e Sérgio Gonzaga, e qual não é o meu espanto quando deparo com uma narrativa de Valdemar Mota, intitulada “O misterioso homem da furna do Relvão”, cujo referente é precisamente aquele vendedor ambulante.
Segundo o referido pesquisador terceirense, que com ele um dia conversou, o “Sai-Sempre” tivera uma infância infeliz, povoada de privações e maus tratos. Começou como moço de circo e foi, durante largos anos, vendedor em feiras populares por conta de outrem. Casou com uma mulher daquele mundo mas, meses depois, foi por ela traído e abandonado. Sem emprego efustigado pela fome e pela miséria, veio parar à ilha Terceira integrando a equipa de um “Carrocel”, que, juntamente com outras atrações de divertimento público, assentavam arraiais no Relvão por altura das Festas São João.
Findos os tradicionais festejos, desmantelada a feira e emudecidas as barracas, o proprietário do “Carrocel” e seus empregados regressaram a Lisboa, mas o “Sai-Sempre”, por desavenças havidas com o patrão em vésperas de embarcar, decidiu permanecer em Angra. Sem eira nem beira, fez do Relvão a sua casa. Instalou-se num barranco que por lá havia, junto de lixos, dormindo enrolado num capote cinzento da tropa. De manhã, vestia o seu fato coçado e era vê-lo, junto do Tanque do Azeite, de espelho em punho a barbear-se com esmero e a pentear-se com todos os retoques. Dali seguia, todo janota e risonho, para a Praça Velha, onde o negócio nem sempre corria bem, pois que por vezes os proventos nem davam para uma sopa…
Nunca ele disse o seu nome a ninguém. E, de um dia para o outro, o “Sai-Sempre” desapareceu misteriosamente. Não mais voltou a ser visto nem dele se soube mais notícias. E ninguém lhe sentiu a falta.