Experientes e hábeis marinheiros, eles dominavam a arte de bem navegar, manejando, com espantosa mestria, os lemes da Espalamaca, Calheta, Velas e outras frágeis embarcações. Uma arte herdada de uma sabedoria popular e de uma experiência vivida, no dia a dia, por riba das águas do Canal Faial/Pico.
Eles eram os Homens do Canal e sabiam ler o tempo, as mudanças de maré, os regimes de correntes e de ventos… Em dias e noites de borrasca, dominavam, com precisão e afoiteza, as situações mais adversas, levando a bom porto pessoas e bens. Como esquecer aquelas viagens em que a lancha surfava na vaga da “meia broa”, deslizando vertiginosamente e cavalgando a crista de gigantescas e impetuosas vagas de mar?
Quando era preciso, estes lobos do mar corriam riscos para salvar vidas. Os seus nomes fazem hoje parte do imaginário destas duas ilhas irmãs: Mestre Guilherme, Mestre Simão, Mestre Feijó, Mestre Medeiros, entre outros.
A eles escrevi e dediquei o seguinte poema, com o título desta crónica e musicado pelo Carlos Alberto Moniz:
lobos do mar, marinheiros/ sois filhos de baleeiros/ a navegar no Canal…/ homens que não têm idade/ a vossa bondade/ rima Pico com Faial./ cinco milhas de distância/ de aventuras e errância/ nas voltas da solidão…/ nas refregas da viagem/ vou partir p´rá outra margem/ em balanços de emoção!/ minhas mágoas são tamanhas/ estas ondas são montanhas/ que desabam nos brandais…/ ai mau tempo no mar alto/ passageiros, sobressalto/ vagas que varrem o cais…/ mestres de um saber antigo/ um jeito de ser amigo/ nas andanças deste mar!/ proa à vaga ilha em frente/ no cruzeiro desta gente/ já estamos quase a chegar./a fazer a travessia/ quer de noite quer de dia/ p´ra vós não há temporal…/ com mar “rofe”, com bonança/ vossa lancha sempre avança/ para a ilha do Faial!/ para salvar uma vida/ há viagem garantida/ e um sorriso fraternal/ pela vossa valentia/ p´la coragem e ousadia/ sois os Homens do Canal!
E não se pode falar destes bravos homens do mar sem lembrar o incontornável Gilberto Mariano (1909-1991). Era vê-lo sobre o cais da Madalena, sustendo, na hercúlea força dos seus braços, os impulsos da lancha em movimentos de marcha à ré e marcha à vante, aliviando ou contendo o cabo enrolado em torno do cabeço, em perfeita conjugação com a perícia de qualquer um dos Mestres acima referidos.
Em 1982 o meu amigo Sérgio Luís e eu fizemos, para a RTP/AÇORES, um programa a que demos o título de Bom Tempo no Canal. As gravações decorreram alegremente a bordo da Espalamaca a navegar de um lado para o outro do Canal, ao toque de música dos Maré Viva. Durante a viagem, entrevistámos o sr. Quaresma, Mestre Medeiros e Gilberto Mariano.
Lembro-me como se fosse hoje. O “Gilberto das Lanchas”, honesto e simpático, tinha a cabeça coberta com o tradicional chapéu de palha de abas reviradas, vestia froca de cotim cor de cinza e calçava “albarcas” à moda do Pico. Era ele que fazia o transporte diário, da Madalena para a cidade da Horta, de cartas, de remessas de dinheiro para os bancos, de cabazes e encomendas, tendo como principais destinatários os estudantes picarotos do Liceu da Horta. O que lhe era entregue tinha a garantia de chegar ao seu destino. Empurrando uma singularíssima carroça de mão, estou a vê-lo caminhando, altivo e sorridente, pelas ruas da Horta. Toda a gente nutria grande respeito por este homem que não sabia ler nem escrever. No regresso ao Pico, transportava mais cartas, medicamentos e toda uma série de “recados” que lhe eram pedidos.
A figura do Gilberto, que já tinha o seu nome numa rua da Madalena, está agora perpetuada numa bem conseguida estátua no Porto Velho daquela vila.
A “comunidade do Canal” (na acertada expressão de Tomás Duarte) agradece.