“Ah! Ovo que deixei bicado e quente.
Vazio de mim, no mar,
E que ainda hoje deve boiar – ardente Ilha!
E que ainda hoje deve lá estar!”
Vitorino Nemésio, “O canário de oiro”, O Bicho Harmoniosa, 1938
Saímos da ilha, mas a ilha não saiu de nós. Ela navega dentro de nós e em nós deixou uma memória indelével e retroativa. Território de magia, beleza, sedução e mistério, a ilha é o nosso microcosmo de referência, o nosso roteiro sentimental e afetivo, a nossa lembrança em carne viva. Por isso ela será sempre o nosso regresso a casa, o nosso retorno às origens.
Ao regressar à ilha, buscamos a harmonia, os cheiros da terra, a unidade original. Com saudade enternecida, e num perpétuo ato de redescoberta, procuramos, ainda e sempre, o tal ovo “bicado e quente” que deixámos algures na ilha…
Sabemos, mas fingimos não saber, que a ilha que se abandona nunca será a mesma ilha a que se regressa. Para nós ela continua a ser o lugar onde nunca se chega, e de onde verdadeiramente nunca se parte em definitivo. É a lei do eterno retorno: tudo volta ao princípio, tudo volta ao seu primordial. Porque na ilha, espaço matricial e mítico, deixámos nossa infância e adolescência enquanto paraísos irremediavelmente perdidos.
Por isso, a primeira coisa que fazemos quando à “terra natal” retornamos é percorrer os lugares da nossa meninice que agora nos parecem tão pequenos… Com ternura transbordante, acionamos as recordações desse tempo distante em que habitam as primeiras rajadas da vida, as primeiras emoções e sensações, sonhos e angústias, perplexidades e dúvidas, medos e contradições. É uma caça a memórias iniciáticas, como se estivéssemos a ver um filme ao retardador (o cinematográfico “flash back) com fugidias imagens que se decompõem e se refazem:
Os desvelos carinhosos de pai e mãe, e a nossa relação inocente e fascinada com os outros…
As manhãs de apanhar borboletas, as tardes de atirar pedras ao mar e as noites de ouvir o canto dos grilos…
A água fresca do talhão…
O porco dependurado na trave-mestra da cozinha, de cabeça para abaixo, todo aberto…
A escola primária, a rudeza do professor, o óleo de fígado de bacalhau, a caligrafia esmerada…
A missa dominical e o cheiro a incenso e a cera queimada…
Os paquetes na linha do horizonte e a silhueta dos barcos no cais de pedra…
As viagens da velha camioneta à volta da ilha…
O sortilégio do cinema e o Dia de São vapor…
Os primeiros bailes, os primeiros cigarros, os primeiros beijos trocados no moinho abandonado e os primeiros desvanecimentos vividos na sineira da igreja…
O Verão e os banhos magníficos na rebentação das ondas…
Sim, sabe bem olhar para trás e, nessa pausa de tempo, recuperar algum apaziguamento interior que os anos foram transtornando e subvertendo. Sem o passado nada somos, nada poderemos ser nunca. Perpassam boas recordações de bons tempos que não foram tempos bons, pois que vivendo as limitações de uma sociedade fechada sobre si mesma, cedo nos defrontámos e confrontámos com o subdesenvolvimento, a pobreza, a intolerância e todas as chagas sociais, políticas e culturais que nos deixou o mísero Estado Novo.
“Sair da ilha é a pior maneira de ficar nela”, escreveu o escritor Daniel de Sá, que tanta falta me faz.
Dilacerados pelas saudades, tiramos férias (fugindo ao cinzentismo do trabalho e da rotina) e regressamos à ilha. Para celebrar a vida, a família e a amizade. Com alegria e boa disposição. Para comer cavaco e cracas e beber quantidades industriais de vinho e cerveja.
O danado do tempo vai passando, estamos mais vividos e menos jovens (e menos magros), mas “young at heart”, continuamos a ver a ilha com os olhos da memória e da distância.
P. S. Dedico esta crónica a todos os emigrantes com quem me cruzei este Verão na minha Graciosa ilha.