ao meu irmão Duarte Nuno Dores
Naquele tempo íamos para a escola, de batas brancas e calções, como quem vai para o cadafalso…
Eu tinha todos os dias cólicas horríveis antes de entrar naquele velho edifício escolar. Havia uma única sala de aula, com luz turva e triste, e ali cabiam todos os alunos da 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classes, dominados pelo mesmo sentimento de terror em relação ao velho professor que era tão mau como estúpido. Atarracado e grosso, ventre dilatado, ele tinha a face seca e enrugada, pálpebras caídas, nariz adunco, rijas cordoveias no pescoço, dedos tisnados de tanto fumar… Com postura agressiva e sempre a pigarrear, passeava-se por entre as velhas carteiras (a que nos sentávamos dois a dois), fitando-nos, ameaçadoramente, com a grossa régua de madeira na mão direita…
– Meninos, digam-me lá: onde nasce o rio Minho?
E, em coro, repetíamos, sem termos a mínima noção do que estávamos a papaguear:
– O Rio Minho nasce nos Montes Cantábricos, passa por Melgaço, Monção e Valença, e desagua em Caminha.
As aulas eram uma inquietação de cópias, ditados, redações, leitura, números… Tínhamos de memorizar coisas absolutamente inúteis, que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender. Eram os nomes dos reis de Portugal, os rios, riachos, afluentes, cidades, vilas, aldeias, regiões, províncias, concelhos, serras, cordilheiras, montes, montanhas, mesetas, planaltos, linhas de caminhos de ferro, pontes, aquedutos… Decorávamos também as produções das longínquas colónias ultramarinas, nesse tempo em que Portugal era “uno e indivisível do Minho a Timor”…
Quando chegava à aritmética é que era um cabo dos trabalhos… O vozeirão do irascível professor ecoava nos ouvidos e metia-nos medo:
– 9 X 7 são…
O silencio era confrangedor. O professor, carrancudo e sinistro, passava a mão direita pelo cabelo, e disparava:
– Ó seus cabeças de burro, não sabem a tabuada? Estendam as mãos! Todos!
Então o rígido e ríspido professor punha os alunos todos em fila e as reguadas (os “bolos”) estalavam nas mãos dos rapazes, que se torciam e choravam, ou que sopravam na pele inchada e dorida. Levavam todos – levava também o que acertara na resposta, a quem o severo professor dizia com um arzinho de malícia:
-Tu, tu também apanhas que é para não te esqueceres…
Paralisados de medo ficávamos quando era dia de Ditado, palavra que era sinónimo de calafrios: cada erro, quatro reguadas…
Havia outras punições humilhantes em vigor: ficar de joelhos, suplícios de estátua, o nariz contra a parede durante horas a fio… Mas os mais violentos eram as bofetadas, os puxões de orelhas, as verdascadas nas pernas, as cabeças contra os tampos das carteiras ou contra o quadro… Alucinado, o odioso professor aplicava estes castigos com laivos de puro sadismo. E a tudo isto assistíamos, resignados, infelizes, assustados e desprotegidos…
Eram estas as bases da gloriosa pedagogia do Estado Novo: a pedagogia da porrada! Opressão e repressão. Muito respeitinho e disciplina mantida pelo terror. Este método, atroz e brutal, era tão bom ou tão mau que eu nunca consegui aprender a tabuada. Ainda hoje a não sei…
Só quando a campainha tocava para o recreio é que deixávamos de ser taciturnos e corríamos para o pátio onde brincávamos ao “saia-rato” a saída é que era uma sensação de grande alívio. Regressávamos a casa, a pé, com galhofa e retoiço pelo caminho.
Há quem tenha saudades dos tempos da escola primária. Eu sonho às vezes com ela e acordo sempre, apavorado…