à Isabel Maria
Recordo-a com saudade enternecida.
Chamava-se Ariovalda Maria Medina Santos Leonardo (1936 – 2016) e foi pela sua mão amiga, a quem me prendiam laços afectivos e quase familiares que, menino e moço, me iniciei no folclore.
Comecei por integrar, nos finais dos anos 60 do século passado, o Grupo de Baile Infantil do Lawn Tennis Club. Era nossa ensaiadora D. Maria Vitorina, a carismática criadora da “Tia Jarónima de Jasus”, personagem que tanto sucesso fez aos microfones do Rádio Clube de Angra. Ariovalda era colaboradora de D. Maria Vitorina, ajudando-nos, com paciente autoridade, no acerto da coreografia das modas que iam da Charamba à Sapateia: formação do “bailho”, marcação dos tempos, evolução dos pares, correcção de posturas e movimentos. Bailávamos e cantávamos acompanhados, às teclas, por D. Alice Borba e, à viola da terra, por dois tocadores de referência: Laureano Reis e Henrique Borba.
Tenho belas e doces recordações desse tempo em que Ariovalda, juntamente com seu marido Jacinto e sua filha Isabel (menina dos meus olhos e meu par no referido grupo folclórico) eram visita regular da casa dos meus pais à Rua de Santo Espírito, em Angra do Heroísmo, em serões bem animados: ali tocava-se piano, cantava-se, dançava-se a valsa e o tango, fazia-se crochet, jogava-se a sueca, às prendas e ao anel nessas longas noites de não haver televisão…
Anos mais tarde, já espigadote e aluno do Liceu de Angra do Heroísmo, fiz parte do Grupo Folclórico do Magistério Primário, também por convite de Ariovalda e atendendo à escassez de elementos masculinos que na altura se verificava nesse grupo. Tinha como par a minha irmã São, então aluna do Magistério, e éramos ensaiados por Ariovalda, estando a direção musical a cargo dos carismáticos irmãos Luís e Fernando Soares, músicos de robusto talento.
Por conseguinte, desde muito cedo aprendi folclore com os melhores. Tive ali a minha primeira grande escola de música e de vida. E fui sempre muito estimulado por Ariovalda, a quem, de resto, o folclore terceirense muito deve, sobretudo no âmbito da formação dos mais jovens. Poucos como ela se entregaram, de alma e coração, à nossa música tradicional, dando verdade e dignidade à etnografia. Ela sabia da importância de recuperar, recriar, preservar e divulgar o folclore junto de crianças, jovens e adultos. E, nesta matéria, fez escola levando o folclore às escolas da ilha Terceira.
Mulher livre, emancipada e carismática, dotada de uma sensibilidade artística, de um espírito assumidamente crítico e de uma grande intuição musical, Ariovalda foi digna intérprete do folclore terceirense, primeiro como cantadeira e, posteriormente, como ensaiadora. O folclore (que traduz e reflecte a alma de um povo, as suas tradições, as suas crenças e os seus costumes) foi sempre a sua “militância”, o seu campo de batalha… Folclore que ela soube, escrupulosamente, acarinhar, respeitar e valorizar. E, durante uma vida inteira, em vários grupos folclóricos terceirenses, deu voz, corpo e expressão a essa tradição musical com raízes fundas e profundas nas cantigas de amigo, nas cantigas de escárnio e maldizer, nos cantares de gesta medievais, nos cantos e dançares trovadorescos.
Nascida por mera circunstância na ilha Terceira, viveu os verdes anos na Graciosa, iniciando-se musicalmente a cantar na “capela” da igreja Matriz de Santa Cruz da Graciosa, na companhia de sua irmã Antonina. Meninas prendadas que eram, orgulho da mãe Eduína e do pai António, na “ilha branca” tiveram aulas de piano com D. Palmira Mendes Enes, com quem também aprenderam a dançar, a pintar e a bordar. Posteriormente fixaram ambas residência na ilha Terceira, onde constituíram família. Fizeram parte do Grupo da Canção Regional Terceirense onde as suas vozes, frescas e expressivas, se impuseram naturalmente: a de Antonina bem modulada e com agudos brilhantes; a de Ariovalda bem harmonizada e limpa. Mais tarde dedicar-se-iam ao belcanto, integrando o naipe de sopranos/contraltos do Coro AMIT Padre Tomás de Borba, sempre com belíssimas prestações.
Mas foi sempre no folclore onde mais se destacou. O seu nome está indissociavelmente ligado ao grupo “Os Bravos”. O mesmo se diga relativamente a vários grupos folclóricos, nomeadamente os de Vila Nova e Fontinhas. Em 1974 integrou o Grupo Folclórico das Doze Ribeiras, tendo participado, em 1980, na gravação do primeiro LP daquele grupo como solista de alguns temas. Até ao fim dos seus dias, e de forma didáctica e pedagógica, levou o folclore às creches e às escolas do 1º ciclo do ensino básico criando, junto dos mais novos, o gosto pela bailação.
É também a partir dos anos 80 que Ariovalda dará importante contributo no surgimento das marchas de São João, tendo, ao longo de duas décadas, coreografado muitas delas, com especial destaque para a Marcha da Rua de São João. E não ensaiou marchas só para adultos – fê-lo também, com o mesmo desvelo, para as crianças. Sempre inquieta e firme nas suas convicções, sempre solidária para com os outros, numa partilha e troca de experiências que jamais esqueceremos. A sua morte, injusta e inesperada, deixou-nos a todos bem mais pobres.
Uma coisa é certa: em tudo o que fez, Ariovalda foi verdadeira, autêntica e genuína. Ela foi uma mulher singular que iluminou as nossas vidas.