a quem quer contrair matrimónio
“Fracas, as mulheres são o diabo.”
D. Francisco Manuel de Melo
Trata-se da Carta de Guia de Casados (publicado em Lisboa em 1651), obra de caráter moralista da autoria de D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), escritor e aristocrata libertino que, hoje, apelidaríamos de machista e marialva. Escrevendo para um amigo que se preparava para casar, ele vai tecendo uma série de considerações sobre a vida familiar e conjugal, dando abundantes conselhos. São conselhos de um solteiro para outro solteiro, por conseguinte, conversa de homens que verdadeiramente nada sabem sobre mulheres.
“Criou-as Deus fracas, sejam fracas”, decreta o autor, para quem a mulher é uma criatura débil, impura e fraca por natureza… O autor defende, assim, o princípio da inferioridade natural da mulher, descrevendo-a como elemento que se deve submeter à autoridade do marido e, por isso mesmo, não deve cultivar demasiado a sua inteligência, sendo que o único livro a ela adequado é “a almofada e o bastidor”…
Esforçando-se por desenhar um ideal feminino, pretende D. Francisco Manuel de Melo que a mulher seja “esposa do lar e mãe devotada”, a quem se deve limitar as relações sociais, devendo, no entanto, assistir a missas e responsos; as suas virtudes naturais serão a submissão, o pudor, a austeridade, a resignação, a ternura e a prudência; ao homem caberá o papel de pater-familias, a quem se perdoará um ou outro deslize na procura, fora do lar, das tentações da carne…
O autor desconfia das mulheres “que foram aprendendo a escrever com a ponta da agulha”, e abomina as “femmes savantes” – mulheres esclarecidas que sonham de mais por lhes ser permitido o convívio intelectual dos salões doirados… Ele encara a beleza da mulher como instrumento de adultério, tentação e pecado… Não mitifica a mulher (como, mais tarde, farão os românticos), bem pelo contrário, rebaixa-a e redu-la à condição de função e de objeto. E vai mais longe: citando São Tomás, lembra que, instrumento do Diabo, a mulher “é um ser defeituoso e um macho falhado”…
O velho D. Francisco Manuel de Melo adverte o amigo para o perigo das viagens: “Todo o casado no ausentar-se por longo tempo da sua casa, tenha muito tento”… Lembra, por várias vezes, as três tentações: Mundo-Diabo-Carne como faróis traiçoeiros do adultério – adultério que só conta como tal quando praticado pela esposa…
Estamos obviamente perante um manuscrito contra todas as liberdades das mulheres. E, para ajudar a festa, o autor cita uma série provérbios e aforismos que ficaram famosos. Por exemplo: “Que Deus me guarde da mula que faz him e da mulher que sabe latim”. “Do homem a praça, da mulher a casa”. “À esposa arca, ao marido barca”. “Mulher honrada é boa vida e boa morte”. “Cá em casa manda ela, mas quem manda nela sou eu”. “O homem que cheire a pólvora, a mulher a incenso”, entre outros.
Mas, nesta matéria, D. Francisco Manuel de Melo não está só. Senão vejamos. Desde os doutores da Bíblia aos estadistas contemporâneos, muitos são os autores que enalteceram a posição subalterna da mulher no estatuto da cidadania. Exemplos: “O destino da mulher é ter filhos”, Rousseau. “A mulher só tem um destino – menagère ou cortisane”, Proudhon. “A participação da mulher na vida moderna deve fazer-se unicamente através da sua atividade de esposa e mãe”, Aldai Stevenson.
E temos a Mulher dos três “K” na Alemanha do Nacional-Socialismo: Kinder Küche, Kirche – “filhos”, “cozinha”, “igreja”. Em versão lusitana o modelo foi reproduzido por Salazar no “Programa da Obra das Mães pela Educação Nacional”: (…) “deixemos, portanto, o homem a lutar com a vida no exterior, na rua (…) e a mulher a defender a criança, a trazê-la nos braços, no interior da casa”.
Outras pérolas na pátria lusa: “A função natural da mulher é a maternidade”, António Quadros. E canta o fadista castiço da velha cepa portuguesa: “Eu cá p´ra mim/ não há, ai não/ maior prazer/ do que o selim/ e a mulher”…
E não vou continuar por respeito às minhas prezadas leitoras, sobretudo àquelas que estejam a pensar em contrair matrimónio num destes dias.